Incomoda-me dever dinheiro. Não é racional. Pelo contrário, é completamente irracional. Tem tudo a ver com a minha educação. Cresci e fiz-me homem impregnado nos valores doutrinários do Estado Novo - pobrezinhos mas honrados, remendados mas não rotos - que me ficaram tatuados no carácter.
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Como tenho vergonha de dever dinheiro (e um orgulho indisfarçado na condição de remediado mas sem dívidas), nunca cedi à tentação de comprar a crédito outra coisa senão apartamentos. Carros, viagens, tapetes, electrodomésticos diversos, adquiri-os sempre a pronto pagamento.
Apesar de todas as contas de somar, subtrair, dividir e multiplicar concluírem que era melhor negócio continuar a dever, a primeira coisa que fiz quando recebi os 179 629 euros que o dr. Balsemão pagou para se ver livre de mim foi liquidar os dois empréstimos à habitação das minhas cassas em Lisboa (onde trabalhava) e Porto (onde vivia).
No entanto, posso garantir-vos que o meu raciocínio não está turvado pela irracionalidade pequeno-burguesa e judaico-cristã que me faz sentir feliz por ter chegado aos 55 anos sem dever um cêntimo e senhor de um património material onde constam dois apartamentos, outros tantos carros, dezenas de quadros, centenas de discos e milhares de livros.
O fim de longas e penosas privações é inevitavelmente pontuado por excessos e abusos.
Os desvarios dos anos quentes de 74 e 75 foram o escasso preço pago por 48 anos sem liberdade.
A factura que estamos a pagar pelo excessivo endividamento dos particulares só é demasiado pesada porque as entidades que se deveriam comportar com mais racionalidade - Estado e empresas - não quiseram perceber que à míngua de poupança das famílias não poderiam continuar a endividar-se a um ritmo alucinante, como se não houvesse amanhã.
Até à nossa adesão ao euro, as taxas de juro eram tão altas que o acesso ao mercado de crédito estava vedado às famílias.
Com a democratização do crédito e o embaratecimento do dinheiro, estimulados pela banca e abençoados pelos governos, as famílias desataram a queimar etapas e a endividarem-se para terem o que dantes não podiam comprar - carros, plasmas, cozinhas, computadores...
Nesta hora de juízo final, peço a todos que tenham a decência de não apontarem o dedo acusador ao endividamento das famílias.
Para terem a certeza que encontram os culpados devem voltar o olhar para a banca, que andava por aí a oferecer dinheiro e para os governos que fechavam os olhos a este bordelo, satisfeitinhos da vida pela explosão do consumo privado ser a locomotiva de um crescimento pouco saudável do PIB.