O Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa recusou levar a julgamento, como autora de um crime de difamação, uma apresentadora de televisão que havia tratado como mulher um colega homossexual de outra estação.
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O tribunal não considerou ofensivo da honra e consideração do visado que este tenha sido tratado como «apresentadora» numa óbvia alusão à sua homossexualidade. O episódio ocorreu em 2010 num programa que os seus autores definiram como de «humor tardio», durante o qual a arguida, dirigindo-se a um convidado, perguntou quem era «a melhor apresentadora portuguesa», indicando-lhe, de seguida, os nomes de três mulheres e o do apresentador homossexual. Antes, porém, houve um diálogo que vale a pena reproduzir. «Vamos para a quarta pergunta da noite, esta sim a mais importante», disse a apresentadora, tendo o convidado ripostado que não queria «ordinarices» ao que a própria apresentadora retorquiu: «esta é uma ordinarice».
O TIC acreditou que nunca houve qualquer intenção de brincar com a homossexualidade do ofendido e considerou que ele «é uma figura pública a quem todos lhe reconhecem características comportamentais que refletem atitudes atribuídas ao sexo feminino, tal como a sua forma de se expressar, as roupas coloridas que veste próprias do universo feminino, tendo sempre vivido num mundo de mulheres (veja--se o programa que sempre apresentou na TV)». Além disso, citou Costa Andrade para dizer que «na discussão de questões de interesse comunitário» apenas deverão valorar--se como ilícitas «as ofensas exclusivamente motivadas pelo propósito de caluniar, rebaixar e humilhar o ofendido». O Tribunal da Relação de Lisboa (aonde o processo subira em via de recurso) confirmou a decisão do TIC, por entender também que a punição dos factos lesivos da honra e consideração só se justifica nas situações em que objetivamente «as palavras proferidas não possam ter outro conteúdo ou sentido que não o da ofensa».
Este caso mostra um dos piores defeitos dos nossos tribunais, qual seja o de os magistrados, primeiro tomarem as decisões e depois irem ao armário dos argumentos procurar as fundamentações que as legitimem. Inverte-se todo o processo de construção das decisões jurisdicionais, partindo-se da decisão para a fundamentação ou, se quisermos, da conclusão para as premissas. Todo o esforço é feito para justificar uma decisão que se tomou previamente, tentando construir as premissas que imponham a conclusão querida.
É óbvio que o ofendido só foi tratado como «apresentadora» por ser homossexual e, por isso, tratou-se de uma ordinarice - como a própria arguida intuíra antes de a consumar -, pois a orientação sexual de uma pessoa pertence àquele núcleo íntimo de valores que não podem ser ofendidos gratuitamente como aconteceu neste caso. Sublinhe-se que essa ofensa não surgiu no contexto de uma discussão sobre questões de interesse comunitário, antes consubstanciou uma tentativa de fazer humor de forma fácil, de ter piada à custa (da honra) dos outros. Teve, pois, um objetivo fútil que deveria ter sido evitado em homenagem ao valor da honra do ofendido, ou seja, em homenagem a essa pretensão de respeito que emana diretamente da dignidade da pessoa humana. O visado é homem, sempre se portou, vestiu e expressou como homem e não como mulher, nem como transexual ou travesti e, por isso, tem direito a que sua orientação sexual não seja confundida com o seu género, muito menos através de insinuações torpes.
Há, de facto, em Portugal, situações em que as decisões dos tribunais acabam por ser mais ofensivas do que as próprias ofensas que as originaram. Se este caso tivesse sido apreciado por juízes homossexuais a decisão seria indubitavelmente outra. Temos, pois, um longo caminho a percorrer até à efetiva igualdade das pessoas com orientações sexuais diferentes. E um dos obstáculos maiores a esse objetivo resulta dos preconceitos enraizados nos nossos tribunais, agravados pelos poderes arbitrários dos magistrados. É que, em Portugal, quem tem de recorrer à justiça não fica sob a alçada da lei, mas sim nas mãos do juiz. A certeza jurídica das leis cede perante o arbítrio pessoal dos magistrados.