Era uma vez uma cidade europeia que, depois de anos de penumbra, conseguira sair do limbo. Estivera, durante muito tempo, esquecida; esvaziara-se de gente, o seu comércio sofrera com a abertura de grandes superfícies nas suas fronteiras, era olhada com desprezo pela capital do Império, o seu modelo tradicional de desenvolvimento fora desvalorizado por sucessivos governos.
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Depois, aos poucos, as coisas começaram a mudar. A Capital Europeia da Cultura, apesar de muitos erros, apontou um caminho; a sua academia abriu-se ao exterior e foi descoberta pelos estudantes estrangeiros; o Metro cresceu e melhorou a sua mobilidade; os seus bairros sociais foram recuperados; iniciou-se, apesar da falta de investimento do estado, um programa de reabilitação do seu Centro Histórico; os seus empreendedores voltaram a acreditar que era possível fazer algo de diferente. E, para que tudo isso fosse exequível, havia uma porta de entrada no novo aeroporto que, ao contrário do que diziam os velhos do Restelo, duplicou em poucos anos o seu movimento, atraindo novos operadores e garantindo o serviço para um número crescente de destinos.
O Mundo descobriu assim a cidade, olhando-a com curiosidade por ser muito diferente das outras; por ter preços convidativos e, no entanto, ter um conjunto invulgar de atrações, por proporcionar uma rara diversidade cultural e arquitetónica, por ter movida noturna, por ser barata e ter pouca criminalidade, por ter bom clima, por estar entre o mar e o rio. E, à medida que a nova identidade se afirmava, e merecia elogios dos media internacionais, foram sendo construídos hotéis para todas as bolsas. Mas tudo isto só foi possível porque essa cidade, apesar de esquecida pela transportadora aérea nacional, tinha um aeroporto que atraía os novos operadores aéreos que apostaram no custo reduzido das viagens e que a colocaram, em termos de custo, mais perto do centro da Europa e dos mercados mais afluentes. E tudo parecia então encaminhar-se para que a cidade, que fora portuária, e agora era aeroportuária, cumprisse o seu novo destino, apesar da crise, que resultara da falência do Estado que sempre a desdenhara, e que não a poupava ao pagamento de uma dízima cada vez mais pesada.
Infelizmente, essa cidade situava--se num velho estado colonial que, perdidos os seus territórios longínquos, manteve as suas lógicas inalteráveis, através dos novos diretórios partidários construídos a partir da capital Imperial, que escolhem os seus representantes locais e condicionam todos aqueles que aspiram a esse protagonismo, obrigando-os a um beija-mão silencioso e cúmplice. Por isso, e como tantas vezes ocorreu ao longo da história, a cidade voltou a ser alvo de cobiça, tanto mais que a capital não tinha, à sua disposição, o aeroporto faraónico que há muito pretendia. Durante anos, algumas vozes questionaram o saque que estava planeado, alertaram para a consequência de o seu aeroporto fazer parte do enxoval a vender a privados, para garantir uma boa receita para o Estado e para resolver os problemas do aeroporto da capital. Temiam que, nas mãos de um monopólio privado, interessado em maximizar o seu lucro, o crescimento do fluxo de passageiros passasse a ser irrelevante; sabiam que o investimento futuro seria concentrado na capital, para viabilizar a construção do seu aeroporto.
Os poderes políticos locais ignoraram a questão, que foi sempre desvalorizada pela Comunicação Social. Sem grande contestação, o Governo sentiu-se livre para tomar a decisão que já fora adiada pelos seus antecessores. Valha a verdade, nem precisou de encobrir a sua motivação, explicando, na sua resolução, que o modelo visava garantir a capacidade de financiamento das suas atividades e investimentos, nomeadamente de um aumento da capacidade aeroportuária na região de Lisboa.
Pode ser que a cidade desperte e resista a este saque. Não é provável que isso suceda. Era uma vez uma cidade europeia que, depois de anos de penumbra, conseguira sair do limbo. A ele voltará, por inércia, e por obra e graça da sua classe política, se esta se hipotecar aos ditames do Império.