Com alguma bonomia, pode entender-se que a decisão de "congelamento" da despesa tomada há dias pelo ministro das Finanças é muito interessante. Mostra quem absolutamente manda no Governo e, ao mesmo tempo, confirma a estratégia monotemática que determina a sua ação. Coloca o Estado numa situação única, ligado à máquina, só podendo esta enviar oxigénio para o paciente em estado comatoso se assim aprouver a um único português (ou seja, o ministro). Como tudo na vida tem limites, a medida foi transitória. Mas não deve ser desvalorizada, mais por aquilo que revela do que pela consistência, coerência ou efeito prático.
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Surpreendente é que o congelamento apenas se dê por causa do acórdão do Tribunal Constitucional que julgou inconstitucionais várias das normas do Orçamento. "Ai Jesus!, que me deram cabo do país e destruíram a obra extraordinária que estava a fazer!": foi esse, depois da necessária tradução para língua corrente, o alcance do discurso do primeiro-ministro, enquanto se dedicava a desancar o tribunal. E, já agora, enquanto zurzia o presidente - que, como se sabe, solicitou àquela jurisdição que interviesse.
A verdade é que podia ter sido muito pior. Tivesse o ministro das Finanças decidido congelar o Estado de cada vez que verificou um buraco nas contas públicas devido às falhas monumentais das suas previsões e imediatas consequências nas contas públicas, e tínhamos há muito passado a icebergue. Pela positiva, diga-se que haveria algo de cómico nisto tudo: o ministro das Finanças mudava de nome, passando a Vítor Titanic Gaspar.
Parece, no entanto, que a operação de congelamento se deveu a razões benignas e que é mais para "inglês ver", para impressionarmos os mercados e termos credibilidade perante os nossos credores. Seja, dê-se tal hipótese de barato.
Sem recorrer ao jargão dos especialistas, mais e mais próximo dos códigos herméticos de uma seita perigosa, Portugal e a Irlanda poderão conseguir mais tempo para pagar o que devem. Fala-se em sete anos, oxalá sejam esses ou muitos mais, sempre será uma boa notícia: que, no entanto, só surge devido a uma péssima realidade. Imagine o leitor que está a afogar-se e que só dispõe de uma boia furada e meio vazia a que agarrar-se. A coisa não vai impedi-lo de ir ao fundo. Se alguém injetar um pouco de ar na boia, é bom, ganha algum tempo de vida: mas como está com as pernas atadas e não pode nadar, mais tarde ou mais cedo será devorado pelas águas. Com boia ou sem ela.
Agora, não faltarão sábios a ensinar-nos que este é o caminho, assim como uma plêiade de comentadores a proclamarem com voz grossa que aquilo que vemos não existe, é tão só fruto de uma conceção burguesa e reacionária, avessa ao sacrifício. Ou seja, coisa de extremistas ou vinda de Manuela Ferreira Leite, histórica marxista-leninista.
Um dos efeitos mais significativos da "crise" constitucional foi também a presidencialização involuntária do regime. Involuntária, porque Passos Coelho não a desejava - mas lá teve que ir bater à porta de Belém para vincular o presidente ao seu projeto para de lá sair relegitimado (mas dependente). E involuntária, depois, porque o presidente de bom grado dispensaria a prenda, transmudado que fica em fiador institucional do Governo. Um (o primeiro-ministro), acha que os outros órgãos de soberania são uma maçada velha e revelha. O outro (o presidente), tem agora o Governo ao colo, supremo incómodo porque foi obrigado a clarificar posições e está impedido - pelo menos, durante algum tempo - de adotar a atitude do "como eu já tinha advertido", bem mais confortável e aconchegada. É um casamento de conveniência, claro. Mas não se veja nisso nenhum mal. Este nosso Portugal é cada vez mais um país de conveniência. Ou um icebergue de inconveniência, consoante o olhar.
Esta é a minha última crónica neste jornal. Não sendo muito embora candidato a nada, aceitei ser porta-voz da candidatura de Rui Moreira à Câmara do Porto. Como sempre na vida, prefiro sair pelo meu próprio pé, sem causar constrangimento ou ser educadamente convidado a sair.