Em Portugal o essencial não muda. Não há memória, há só o encolher de ombros, a irresponsabilidade coletiva, a falta de senso e o impasse do "consenso". É variável o direito a não se ser agredido, humilhado ou tratado em manada só porque chegou a um novo local - de ensino, de trabalho, de recruta.
Desenganemo-nos: a estupidez das praxes (a sua existência, o trogloditismo que abunda na cabeça dos seus praticantes e a passividade de todo um sistema de ensino e encarregados de educação que não conseguem ensinar regras de respeito e convivência) não vai mudar porque morreram seis pessoas.
Basta olhar para os números anteriores ao Meco, em que estudantes ficaram paraplégicos ou com lesões graves e irreversíveis, para se perceber que nada mudará a genética pequenina do portuguesinho que faz tudo a brincar. Porque estas coisas são transversais à sociedade portuguesa. No meu caso isso ficou claro na tropa ainda obrigatória da década de 90 quando apanhei com um instrutor na Escola de Cavalaria que fazia da recruta a oficiais e sargentos o seu recreiozinho. Desde o puro sadismo da sede extrema em agosto (mais de 40 graus em Santarém) até ao exercício físico muito para além da formação prevista, valia tudo. Fazer queixa? Na tropa?
Uma noite o "nosso Alferes" tanto nos levou ao extremo que fiquei sem me mexer - com uma crise de estômago. Levaram-me de ambulância ao Hospital Militar de Lisboa onde, para minha surpresa, acordei na urgência ao lado de um sargento dos Comandos que não morreu por mero acaso, dizia ele. A violência do treino e da sede também causava danos nos próprios instrutores. Viviam-se os anos em que morria gente nos Comandos sem que se percebesse porquê. Só acabou quando os ameaçaram de extinção.
Nos papéis funciona tudo bem. O exercício extremo, ou as praxes, ou as "partidas" pregadas a caloiros (seja onde for) nunca são pensadas para dar mau resultado. Mas depois há o português estúpido a quem é dado um poderzinho nunca antes tido. E o resultado é este: tudo o que é levado ao limite acaba por correr mal - como é o caso de uma onda repentina na praia do Meco. Houve dolo? Claro que ninguém quer matar, ou colocar alguém paraplégico, ou gerar humilhações psicologicamente irreparáveis. Mas a vida é assim: negligência apenas, coitados. Dolo pratica, realmente, quem não cria leis claras que meta estas pessoas na cadeia.
2. Foi aliás com esta mesma negligência pueril que a ponte de Castelo de Paiva caiu, vai fazer 13 anos a 4 de março. O ministro Jorge Coelho demitiu-se e ainda hoje é tratado como um herói. Por se ter demitido. Mas não lhe passou pela cabeça - a ele e à classe política da altura, a começar pelo próprio presidente da República da altura, Jorge Sampaio - que ficou uma dívida moral expressa nas promessas feitas àquela terra, que perdeu 59 pessoas - e que eles eram os guardiões morais delas.
Não foi só o tempo que demorou a indemnizarem-se os familiares das vítimas. Construíram-se duas pontes com pequenas variantes rodoviárias em redor da cidade que não vão dar a lugar nenhum. Hoje a situação é um exemplo de esquecimento: faltam seis quilómetros para ligar Castelo de Paiva à A32 e nunca se construíram os 15 quilómetros do IC35 que uniriam Entre-os-Rios a Penafiel - a estrada nacional 106 é um dos maiores palcos de acidentes e atropelamentos mortais do país.
É importante falar-se hoje disto porque estamos nos momentos finais das opções sobre os fundos comunitários 2014-2020 e, uma vez mais, esta obras não são prioritárias. Entretanto aquele concelho fica sem as Finanças, o tribunal já esteve para ser transferido (mas talvez fique), foi-se embora a multinacional de calçado Clarks, não há grandes perspetivas de criação de emprego e por aí adiante.
As 59 vítimas de Castelo de Paiva foram depressa apagadas das "prioridades compensatórias". Com as vítimas do Meco será igual. Há sempre mais um crime por detrás de cada cadáver: o esquecimento, a indiferença, a mudança de paradigma. Portugal tem um brutal défice - de memória. À pergunta garrettiana - "Quem és tu, Estado?" - paira sobre nós o eterno "Ninguém".
