O Fisco para lá dos automóveis
Boa sina, caro/a leitor/a, para o próximo início dos sorteios semanais de automóveis de gama alta entre os contribuintes. A ideia de sorteio não me repugna. Não é ótima: ótimo seria que todos cumpríssemos as nossas obrigações recíprocas. Mas tem por si argumentos de necessidade e eficiência.
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As estimativas variam, mas pelo menos um quinto da riqueza produzida no nosso país escapa à economia formal. O que tem consequências. Aumenta a carga fiscal dos cumpridores; reduz a capacidade do Estado para manter estradas, hospitais, escolas, polícias, tribunais, museus; distorce a concorrência a favor dos infratores; prejudica o equilíbrio orçamental. É preciso combater toda a evasão fiscal, desde o informalismo nos pequenos serviços até à sofisticação técnica das grandes empresas. Para isso, deve melhorar o funcionamento da máquina fiscal; mas também são úteis os incentivos à responsabilização dos contribuintes.
Ora, o Fisco tem obtido ganho nos processos judiciais em torno da cobrança dos impostos, sinal de que está a ser mais cuidadoso e eficaz. A possibilidade de deduzir parte do IVA pago em setores como a reparação automóvel ou pequenos serviços pessoais e, sobretudo, a perspetiva do sorteio já geraram um aumento exponencial das faturas pedidas. Acresce que, em ambos os casos, os procedimentos requeridos são extraordinariamente simples. No ponto específico do combate à evasão, a atuação do secretário de Estado Paulo Núncio parece serena e eficaz. Ele calcula que uns 20% do aumento da receita fiscal se esteja a dever à redução da evasão, e não me custa acompanhar esse cálculo.
Portanto: não sendo uma boa solução, do ponto de vista da moral cívica, o sorteio que este mês se inicia é uma solução necessária e razoável, à luz da teoria económica dos incentivos.
Já o mesmo não se pode dizer do prémio. Acenar com carros de gama alta é o tipo de demagogia que as circunstâncias mais desaconselham. Precisamos de trabalho, poupança e comportamentos razoáveis de consumo, não de bambúrrios da sorte. Por outro lado, o mínimo que se pode dizer é que é muito discutível a opção por uma só marca automóvel, a qual beneficiará de um efeito publicitário a pouco ou nenhum custo. Já foi também notado que, para a larga maioria dos que podem vir a ganhar esta lotaria populista, um carro destes preços e cilindradas (sobre que, naturalmente, não têm, no primeiro quinquénio, propriedade plena) trará encargos financeiros consideráveis.
E, contudo, as coisas não tinham de ser assim, nem terão de continuar a ser assim. Há uma alternativa mais lógica, quer do ponto de vista dos incentivos económicos, quer do ponto de vista da despesa pública, quer sobretudo do ponto de vista da consciência cívica. Não é tão espetacular; mas essa é outra virtude. Não sendo o seu autor, quero apoiá-la.
A alternativa é oferecer, como prémio do sorteio, um dos produtos públicos de poupança, como os certificados do tesouro. A família premiada não fica com nenhum encargo adicional, só tem de contar com o benefício da capitalização. É premiada com uma oportunidade de poupança - que é a mensagem correta - e não com mais um motivo para consumo imoderado - que é a mensagem errada. Podem ser mais pessoas premiadas em cada sorteio. O Estado gasta muito menos: o que dá, como Fisco, é o que recebe, como Tesouro, e os juros que paga até são inferiores aos que lhe exigem outros credores. E, sobretudo, colocada assim a coisa, semana a semana, no serviço público de televisão e em horário nobre, com um apresentador reconhecido e capaz de fazer, sem ares de pregador, a pedagogia do bom comportamento fiscal, todos nós compreenderíamos bem melhor o que é e para que serve o imposto, o que é, para que serve e como se gere a dívida pública.
A ideia é simples. Não põe em causa o incentivo, mas torna-o económica e moralmente mais forte. Alguém a quer? Por exemplo, alguém a pensar num programa alternativo de governo?