A Europa, no dia seguinte ao seu dia
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A Europa podia ter estado ontem em genuína festa, comemorando o 64.° aniversário da Declaração Schuman. No dia 9 de maio de 1950, o então ministro francês dos Negócios Estrangeiros apresentou publicamente a proposta de constituição de uma entidade supranacional europeia, capaz de administrar os interesses comuns de países que se haviam combatido na II Guerra Mundial. Com todas as vicissitudes por que passou, o projeto europeu nunca deixou de perseguir este objetivo inicial: consolidar a paz através da gestão conjunta de interesses partilhados.
Há boas razões para a União Europeia se celebrar a si própria. Ela constitui o maior espaço de produção, comércio e consumo do Mundo. Na comparação entre grandes blocos, o seu rendimento "per capita" só é ultrapassado pelos Estados Unidos e o Japão. A esperança de vida dos seus habitantes é de 83 anos para as mulheres e 77 para os homens. 86% das crianças de quatro anos de idade frequentam um jardim de infância e 79% dos jovens com 18 anos estudam. 73% das casas têm acesso à Internet. A União lidera as iniciativas mundiais para responder às alterações climáticas e para promover a eficiência energética e o uso de energias renováveis. Tem sido a Europa a levar mais longe a combinação entre democracia política, crescimento económico e bem-estar social.
Devíamos mesmo festejar com determinação o espírito e o caminho da integração europeia. Para defendê-los dos ataques violentos que lhe lançam todos quantos gostariam que o capitalismo reinasse sozinho, sem o "incómodo" da cidadania e dos seus direitos. É esta vontade que está por detrás da maioria das críticas ao suposto caráter obsoleto do projeto europeu. Não haja dúvidas sobre isso: os estafados argumentos de que o Estado interfere demasiado com a economia, os custos do trabalho são demasiado altos ou a proteção garantida às pessoas é excessiva, escondem mal o propósito de enfraquecer, senão mesmo derrotar, o modelo social europeu. Isto é: o principal fator da singularidade e do progresso europeu.
Assim, porque há razões para celebrar e porque é necessário defender a Europa contra os seus adversários, cada 9 de maio devia ser um dia de festa genuína. E, contudo, ontem como há um ano, de oficial nada mais houve do que um morno ritual. Como se explica esta descrença da Europa sobre si mesma? Se não foi o modelo europeu a origem da crise mundial de 2008, por que é que a Europa dá tamanhos sinais de desorientação e abulia?
Vejo três razões. A primeira é, desde 2010, a imposição da austeridade como única resposta à crise. Esta opção política pôs as populações a pagarem pelos desvarios dos bancos e fundos de investimento, afundou a economia na Grande Recessão de que estamos saindo a passo de caracol, e fez regredir os níveis de rendimento e bem-estar de grande parte dos europeus.
A segunda razão, ainda mais grave do que a primeira, foi a perda de qualquer sentido de solidariedade e coesão entre estados-membros, de que o comportamento perante a Grécia constituiu demonstração exemplar, mas não única. Ora, isto não significa apenas pôr em causa o espírito fundador da originária Comunidade Económica. É também jogar fora a bandeira que conduziu os sucessivos alargamentos e transformou a Comunidade numa união política: a bandeira da convergência progressiva dos países em termos de desenvolvimento.
A terceira razão ainda consegue ser mais grave. É o medo. Sim, o medo que tolhe lideranças europeias e nacionais medíocres, incapazes de mobilizar e dirigir, intendentes, como diria De Gaulle, mais do que governantes, sem visão e, portanto, sem coragem política.
São estas três razões que estão a bloquear a Europa, a cavar ainda mais o fosso entre os cidadãos e as instituições, a permitir o reinado dos egoísmos nacionais e o avanço da extrema-direita e dos eurocéticos. São elas que fazem as instituições europeias terem realmente vergonha de festejar o seu dia.