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A vitória de António Costa nas primárias do PS é apenas mais um reflexo e um sinal dos tempos. Enquanto, no passado, poucas vezes se ousava apear um líder partidário do seu pedestal enquanto não fosse a votos em eleições legislativas, o juízo da actualidade é bem mais voraz: qualquer líder é apeado do seu posto caso não haja uma expectativa sólida de que os resultados nas legislativas sejam superiores a um suficiente +. Hoje, um partido do espectro do poder não aspira a resultados medianos ou à governabilidade com sobressaltos, aspira e só se concebe na hegemonia. A conclusão é de que os ciclos políticos dentro dos partidos também eles apertaram e de que qualquer liderança está em causa, ainda que não tenha sido sujeita à verdadeira prova de fogo ou ao teste do algodão. Basta olhar para a forma como, no minuto seguinte à vitória de António Costa, se perfilaram as vozes a declarar a morte política de Passos Coelho, clamando pela ascensão de Rui Rio. Líderes de partidos ou primeiros-ministros vigentes já não preparam eleições: sonham em lá chegar.
Na comemoração dos 104 anos da instauração da República, Cavaco Silva apelou a compromissos e alertou para a "implosão do sistema político" perante os elevados níveis de abstencionismo, o crescimento da demagogia e do populismo, o incumprimento das promessas eleitorais e as propostas irrealistas que comprometem o nexo com a verdade e a responsabilidade que deviam ser inerentes à causa pública. A reflexão teórica do presidente sobre a sobrevivência do regime é um pequeno pedaço de retórica enfiada num documento lido. É um alerta sem autocrítica, como se ele próprio pairasse sobre o sistema que ajudou a construir e que permite manter. Como se ainda estivesse a fazer a rodagem ao carro que o levou ao congresso do PSD na Figueira da Foz e à vitória no partido em 1985. É Cavaco Silva fiel a si mesmo, na sua visão do evidente porque evidentemente não pretende mexer um milímetro. Um dia, ultrapassada a rodagem e já com o veículo na sucata, acredito que tenha audácia para admitir que nunca usou dos amplos poderes que a Constituição lhe confere. Esta Constituição, que tanto dos seus companheiros de viagem fazem por reescrever o quanto antes, aí sim, implodindo o sistema político de vez.
Vive-se um momento de reconfiguração dentro de um modelo imposto. Com um modelo europeu autofágico, comandado por um eixo sem noção do exercício de uma democracia realmente representativa, Portugal parece condenado à inevitabilidade histórica e ao percurso cinzento de quem só pode escolher entre o preto e o branco. E no entanto, dentro da moldura imposta - como terá murmurado Galileu depois de negar o heliocentrismo defendido no "Diálogo sobre os dois sistemas do mundo" sobre a ameaça da Inquisição - "E pur si muove!". No PSD adensam-se as dúvidas sobre se Passos Coelho não passa de um simples vidrinho de cheiro que não resistirá à passagem do furacão Costa. No CDS-PP saca-se da fita métrica para voltar a medir os centímetros da muleta do poder. No PS prepara-se a remodelação para o ataque final, contabilizando a fatia que cabe aos perdedores, mantendo-se a incógnita sobre se haverá algum canal televisivo que aceite José Seguro como comentador político. No BE contam-se espingardas com a facilidade com que se enumeram mentiras sobre o passado recente, esterilizando as respostas ao país e fomentando a dissensão interna. No "partido que virá a ser" de Rui Tavares e Ana Drago, espera-se tacticamente pelo convite do PS. No "partido que já é" de Marinho e Pinto, contam-se quantos "flick-flacks" semanais podem garantir uma menção no Guinness Book of Records. No PCP continua a sentir-se a pequena visão de que uma verdadeira alternativa de poder não tem - necessariamente - que abraçar toda a Esquerda sem excepção.
Osistema político em Portugal corre realmente riscos de implosão. Resta saber se será à força da pesada e histórica besta ou do refinado e cirúrgico corte do bisturi. Olhando à esquerda do PS, a única visão de esperança convoca à aproximação ao 25 de Abril e ao entorpecimento da Revolução de 1917. Contemporaneidade. O PCP e o BE deverão cruzar as palavras, medindo - de uma vez por todas e assumindo todas as responsabilidades - as consequências, inevitabilidades e o precipício histórico de mais um não entendimento.