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São centenas de milhares os portugueses que residem nos designados "bairros sociais" públicos, sejam eles geridos pelos municípios ou pelo IHRU-Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana, organismo do Estado responsável por esta área.
Moradores que solicitaram casas pelo facto de as suas não terem condições e não reunirem capacidade económica para arranjarem alternativa no mercado privado de arrendamento. Ou que foram vítimas de incêndios e calamidades.
Mas também muitos moradores que foram desalojados das suas casas em nome do "interesse público" (caso da construção de arruamentos ou de equipamentos públicos, como foi o Centro Materno-Infantil). E moradores que foram expulsos das suas casas, com o pretexto de que as mesmas não reuniam condições, mas em que o que estava verdadeiramente em causa era a expulsão dos "pobres" das zonas centrais das cidades para libertar esses terrenos para os "ricos" e para a especulação imobiliária. Assim sucedeu no Porto nas décadas de 50 e 60 do século passado, com milhares de habitantes a serem afastados para as freguesias (então) periféricas, como eram os casos de Ramalde, Campanhã, Paranhos e Lordelo do Ouro (precisamente as que albergam mais bairros municipais).
Com tanta gente a viver em bairros sociais, coloca-se, então, a questão de saber se este é um direito ou se é um favor que a sociedade lhes faz. A Constituição diz, no seu artigo 65.o, n.o 1: "Todos têm direito, para si e para a sua família, a uma habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e conforto e que preserve a intimidade pessoal e a privacidade familiar". Competindo ao Estado (alínea b do n.o 2) "promover, em colaboração com as regiões autónomas e com as autarquias locais, a construção de habitações económicas e sociais".
Parece, assim, ser um direito. Mas a Lei n.o 81/2014 de 19 de dezembro, aprovada pelo PSD e pelo CDS na Assembleia da República, e que estabelece o regime de arrendamento apoiado para habitação, considera que é um favor. Impondo que a mesma seja aplicada pelos municípios que, em muitos casos, construíram habitação social a expensas próprias.
De facto, esta legislação mantém uma fórmula de cálculo do valor da renda a pagar pelos inquilinos que faz com que a taxa de esforço, ou seja, a percentagem do rendimento do agregado familiar com a renda, seja extremamente elevada, atingindo rapidamente os 20% do rendimento bruto. O que faz com que tenhamos muitas famílias a pagar rendas superiores a 300euro/mês, valor que se torna incomportável para muitas delas. Sendo que, durante décadas, o IHRU não atualizou as rendas, estando a fazê-lo, agora, a "mata-cavalos". O que se traduz em aumentos, nalguns casos, superiores a 1000%! Numa altura de grave crise social e económica, como podem estes moradores, muitos deles idosos e reformados, suportar este brutal aumento das rendas?
Mas a componente ideológica desta legislação, manifestamente de direita e que considera a habitação social um favor, está estipulada no artigo 16.o. Suponhamos um casal que tinha uma habitação T3 por nele habitarem, também, dois filhos. Estes entretanto casaram e saíram de casa. Com base nesta lei, o senhorio pode retirar-lhe a casa e atribuir-lhe um T1 dentro do mesmo município ou num município vizinho! Ou seja: considera um favor a atribuição da casa, pelo que a família se tem que sujeitar a andar com as trouxas às costas ao sabor da evolução do agregado familiar e das conveniências do senhorio (que, no caso, são as autarquias ou a própria administração central). Como Rio fez com o Aleixo: por que devem os pobres ter direito a habitações com vistas para o rio?
Estamos, assim, perante um retrocesso em matéria de habitação social. O que vão fazer os municípios perante esta interferência do Estado centralizador nas suas próprias competências?
