Os mil e um mecanismos de controlo que hoje permitem saber quais as estradas que pisamos, os pagamentos que fazemos, as doenças e idas ao hospital deveriam servir para algo mais do que retirar-nos liberdade. Com tanto cruzamento de informação e tanta base de dados criada nos últimos anos, seria de esperar que ao menos ganhássemos em simplificação de procedimentos e aumento de transparência na relação com o Estado. Puro engano.
A novela em torno do anexo SS da declaração de IRS, obrigatório para todos os trabalhadores independentes (mesmo que acumulem com uma atividade por conta de outrem e mesmo, até, que não tenham auferido qualquer rendimento por conta própria), é um dos melhores exemplos disso mesmo. Por mais piruetas que o ministro Pedro Mota Soares dê, não se consegue entender qual a dificuldade em cruzar os dados fiscais com as contribuições pagas por cada cidadão à Segurança Social.
Este fim de semana o ministro do Emprego veio esclarecer que não haverá multas para quem não cumprir. Coisa que em vez de tranquilizar apenas aumenta a incoerência do processo, sendo lícito concluir que afinal a entrega é obrigatória, mas pouco. Ou obrigatória apenas para quem estiver com pachorra. Ou, justifica Pedro Mota Soares, para "proteger os próprios trabalhadores independentes", aos quais vai dar "mais direitos" e mais proteção em caso de desemprego. Um mistério dos desígnios insondáveis da máquina estatal.
A verdade é que subjacente a esta obrigatoriedade está um princípio que tem vindo a ser aplicado em muitos setores da relação entre a administração pública e os cidadãos: a desconfiança prévia. Cabe ao contribuinte, por mais cumpridor que seja, fazer permanentemente prova da sua inocência. É por isso que é intimado a pagar dívidas que por vezes não tem, tendo de gastar dinheiro e tempo a provar que as contribuições estão em dia. É igualmente por isso que medidas para aumentar a eficácia fiscal têm, como hoje se analisa nestas páginas, obrigado tantos empresários cumpridores a aumentar a despesa e a perda de tempo com novas obrigações burocraticamente pesadas e complexas.
Queremos um Estado eficaz e capaz de combater a evasão. Mas se em nome de maior segurança e simplificação de procedimentos temos permitido tanta intromissão nas nossas vidas, ao menos que as máquinas em que se tornaram os serviços públicos sirvam para cruzar devidamente dados. Se nem para isso, ninguém merece tanto Estado a pesar-nos sobre os ombros.
