
Igor Martins
Ao JN, o guitarrista Peixe evocou memórias dos tempos dos Ornatos Violeta, falou da paixão pela música e desvendou algumas curiosidades.
Peixe apresenta, esta quinta-feira, o novo álbum a solo, "Motor", às 23 horas, no Palácio do Bolhão, no Porto.
Quando é que começou a sua paixão pela música?
Foi mais ou menos na altura que os Ornatos começaram a dar os primeiros passos. Seis anos antes de editarmos o [álbum] "Cão", já tocávamos juntos e já nos chamávamos Ornatos Violeta. Tocávamos muito mal (risos). Éramos muito novos ainda. Fomos aprendendo a tocar com o próprio grupo. A minha primeira ligação à música terá vindo do facto do meu pai tocar uns acordes de guitarra. O meu avô construía instrumentos tradicionais. Era carpinteiro e fazia móveis, mas depois reformou-se e começou a fazer instrumentos tradicionais. Uns cavaquinhos e umas violas. E foi precisamente com os instrumentos do meu avô que comecei a experimentar os primeiros acordes, também com a ajuda do meu pai. Ouvia na escola uns colegas a tocar músicas de bandas fixes e comecei a tentar aprender. O Nuno Prata, na altura, começou a aprender guitarra clássica. O Manél tocava harmónica muito bem. O Kinörm dava uns toques na guitarra, mas como já eram guitarristas a mais (risos), a gente pensou que o ideal era ele comprar uma bateria, o Prata comprar um baixo e pronto, fundamos os Ornatos. A partir daí é que começou a verdadeira escola.
E que bandas fixes eram essas?
Os Violent Femmes eram a banda comum a todo o nosso grupo. O Prata era fã absoluto dos Beatles. O Manél Cruz gostava de Simon & Garfunkel. A primeira vez que toquei com ele foi na festa de fim de ano no nono ano na escola. Ele estava a tocar harmónica e sabia as melodias dos Simon & Garfunkel, e eu os acordes. Então tocámos juntos. Quando ficámos mais crescidos, começámos a gostar assim de coisas mais alternativas. No meu caso, tinha alguns colegas mais velhos, "punks" e góticos, que me mostraram coisas que eu nem sabia que existiam. Joy Division, The Clash, Bahaus. Para mim foi uma descoberta, uma revolução. Tive consciência de que havia mais música para além daquela que dava na rádio e na televisão. Nunca me tinha ocorrido que havia mais coisas (risos). Estava na caverna (risos).
E donde é que surge este "Motor"?
Essas experiências foram passando e eu fui-me sentindo mais capaz, porque apesar de ter estudado música, continuei sempre a sentir-me um autodidata. Os sítios onde aprendi mais foram nas bandas que estive. E mesmo nas academias aprendi mais nos corredores, com os alunos, a falar e a mostrar e a fazer sessões. Mesmo quando estive nas Belas Artes também. Sempre aprendi mais de uma forma lúdica do que propriamente nas aulas (risos). Comecei a acumular mais conhecimentos para ser capaz de construir uma narrativa musical. Era uma coisa que eu costumava fazer em grupo, mas a partir de determinada altura sentia necessidade de juntar o meu gosto pela criatividade ao gozo de tocar guitarra. Cheguei a um ponto na guitarra em que precisava de sentir que era capaz de fazer música com o meu instrumento. Há uns anos, pensei que era muito estranho eu ser músico e tocar guitarra há tantos anos e não ser capaz de fazer música [narrativa] com o meu instrumento. Tinha sempre que arranjar um baterista e um baixista (risos). Precisei de mais. Desmistifiquei um pouco a música. A música é uma coisa que pode acontecer com alguém a bater palmas só. Lembro-me daquele filme, o "It might get loud" em que uma das minhas cenas favoritas é uma em que o Jack White está a mostrar os vinis favoritos dele, e mostra um de Son House, que é dos primórdios dos blues. Há uma faixa que é só ele a cantar e a bater uma palma. E o Jack White diz que é aquilo que ele persegue na música. Não quer mais nada, tudo o que ele faz é procurar aquela simplicidade e aquela força. E eu tenho muito essa ideia. A música para ser poderosa, para conseguir comunicar com as pessoas, não precisa de grandes artifícios nem de grandes produções. Nesse sentido, tornou-se importante pegar na guitarra e dizer "Eu tenho que ser capaz de comunicar com as pessoas com o meu instrumento".
No CD há faixas com sons de pássaros. Ouve-se o respirar enquanto se toca. Ouve-se os dedos nas hastes também de forma muito vincada. Há também a tal presença da flauta transversal. A sua música é preocupada com os detalhes?
Acho que sim. As peças têm detalhes na dinâmica, na narrativa. Isto em termos de discurso musical. No que toca a essas pequenas sonoplastias, sim, a ideia era tentar não perder a coerência do disco como um todo. Tentar cortar uma certa monotonia que podia advir do facto de o disco todo ser só com uma pessoa a tocar guitarra. Então, o som dos passarinhos resulta num acaso, por exemplo. Essa música foi composta precisamente na aldeia, debaixo de uma ramada e com os passarinhos a piar. Quando gravei decidi colocar logo esse elemento. Já a flauta veio de experiências feitas com esse instrumento e eu lembrei-me que podia resultar no disco. Já o som dos dedos nas hastes, isso não foi premeditado. Pelo contrário, nós até tentamos reduzir um bocadinho esse som, mas faz farte. O que me agrada na guitarra é uma certa imperfeição no instrumento. Daí eu tocar neste momento mais guitarra acústica e menos a elétrica. Agrada-me essa orgânica de sentir a vibração na barriga.
Em relação ao grafismo do disco enquanto objeto. O grafismo é da Ana Torrie. As imagens são curiosas. Na capa está uma criança em cima da mesa a segurar um avião e as outras crianças em baixo sentadas com um olhar sombrio. Que ponte há entre a ilustração do álbum e as suas músicas?
Convidei a Ana Torrie porque gosto muito do trabalho dela. Acho que é muito talentosa. Já me tinha cruzado com ela algumas vezes, mas não a conhecia muito bem. No início, ficou um bocado assustada com o convite, porque me disse "Ah, "Motor", não sei o que é que vou fazer" (risos). Pediu-me fotografias minhas de criança. Dei-lhe algumas e dois dos desenhos [o da criança por cima de um carro e o da capa do álbum] são inspirados nessas minhas fotografias. Apesar de que na fotografia original que levou ao desenho da capa, eu não estar a segurar num avião. Isso já foi invenção dela (risos). E gostei imenso. Adorei. A leitura que eu faço [à imagem da capa] é de que como se fosse uma criança com um olhar sonhador que está num patamar superior, num mundo de sonho, a brincar com o seu aviãozinho, enquanto lá em baixo estão as outras crianças, com caras grotescas no mundo material da cobiça, da comida. Esta é a leitura que eu faço (risos)...
E o avião talvez represente esse "motor" de sonho que a criança transporta...
Sim. Penso que sim. O título tem a ver com a pulsão, mas acima de tudo o que me fez assumir este nome é o facto de a música ser o meu motor de vida.
E a convivência entre artistas numa mesma banda é para si um claro exemplo de como deve uma comunidade relacionar-se entre si?
Sim, mas não quer dizer que também não haja imperfeições, não é? Tenho o caso dos ornatos violeta (risos), que durante anos foram um excelente exemplo de comunidade, de amizade, de troca de conhecimento e de evolução. E depois chegou também a uma altura de conflito, de interesses contrários e nós acabámos por nos separar e acho que fizemos bem, para a nossa amizade e para a nossa saúde mental. Para a natureza é muito difícil arranjar um modelo, mas sim. Acho que a arte e a criatividade em conjunto podem ser fatores decisivos para elevar a qualidade de vida. Eu também trabalho como formador e em projetos de música em comunidade. São vários grupos que se juntam e fazem um espetáculo final e todo o processo é super gratificante. É incrível a alegria nas pessoas (risos). Eu acredito que a música tem um enorme potencial a esse nível. Concede autoestima às pessoas. Diversão. Estimula a concentração, a criatividade e a comunicação.
E atuar a solo e em grupo são experiências muito gratificantes e diferentes. Na experiência a solo descobre-se muita coisa sobre nós próprios, sobre a capacidade de concentração, de expressão. É um desafio enorme e às vezes chega a ser angustiante, porque o foco está todo apontado para nós e a responsabilidade é muito grande. É um desafio enorme. Qualquer desafio eleva-nos, quando nos damos a ele e quando conseguimos ultrapassá-lo.
E depois há aquele caráter de universalidade. Pode-se depreender que a música é aquela arte que se reproduz no exato momento em que está a ser feita. Se uma pessoa ler um texto na china em Português, o público não vai perceber. Enquanto se o Peixe tocar guitarra na China, a pessoa vai sentir como se sente aqui. É mais universal. Concorda?
Completamente. Sem dúvida. Essa é uma das razões que me leva a estar mais ligado agora à música instrumental, apesar de continuar a gostar de canções. A partir do momento em que existe texto, deixa de haver aquele lado mais universal da música. Não quer dizer que o texto não possa acrescentar coisas fabulosas, mas já estamos a limitar o código universal da música. A música como linguagem universal é uma coisa mágica. Essa linguagem abstrata, em que cada um pode tirar a sua interpretação.
Como já atuou em espaços tanto mais intimistas, como em espaços maiores e mais abertos, há alguma situação caricata que queira partilhar, originada com o público?
Tanta coisa (risos). Uma vez uma fã estava a pedir autógrafos, no fim do concerto, e quando fomos lá assinar, perguntámos se ela gostava dos Ornatos, e ela respondeu "mais ou menos" (risos). Essa é uma história que eu gosto bastante. Outra foi em que, no final de um concerto, o Manél Cruz estava nas barraquinhas da Queima das Fitas, e disseram-lhe assim "ah! Tu és dos Ornatos!" e ele "Sou, sou" e respondem-lhe "ah! Gosto mais dos Clã, mas está tudo bem" (risos). A solo acontece às vezes eu estar a tocar e ter que impor o silêncio na sala. Há salas em que quando se começa a tocar, está logo um absoluto silêncio, sobretudo quando são auditórios. Já quando se atua em bares ou sítios do género, as pessoas estão a conversar. Na minha música eu não consigo tocar nem sentir-me bem, se tiver ruído de fundo. Não consigo. Então, às vezes, tenho que tocar muito baixinho (risos) e olhar assim ameaçadoramente para as pessoas que estão a fazer barulho (risos). O pior que já fiz foi numa vez em que estava a atuar em duo com o João Pais Filipe, que é um baterista cá do Porto. Dessa vez tive que pousar a guitarra e ir ao encontro da mesa da primeira fila e pedir, educadamente, para falarem mais baixo, porque estavam a atrapalhar o concerto (risos). Há pessoas que não têm a noção, nem o respeito. Nem lhes passa pela cabeça que aquilo é falta de educação. Espero que as coisas melhorem com o tempo e que o público fique mais ensinado a respeitar (risos).
E depois da apresentação do álbum no salão nobre do Teatro do Bolhão, que mais concertos estão marcados para breve?
A solo vou tocar dia 15 de maio em Vila Real. Dia 16 de maio em Braga, no "Gnration". E no dia 21 de maio vou atuar no Teatro do Campo Alegre, nas Quintas de Leitura.
