
Olga Roriz cumpre este ano 40 anos de carreira; 20 anos da sua companhia e 60 anos de idade
Pedro Correia/ Global Imagens
Olga Roriz cumpre este ano 40 anos de carreira; 20 anos da sua companhia e 60 anos de idade. Para assinalar estas efemérides a sua companhia de dança apresenta, esta sexta-feira e sábado, no Teatro Nacional S. João, no Porto, "A sagração da Primavera".
Na próxima semana a companhia Olga Roriz estará, no mesmo palco portuense com a coreografia "Terra". Em Julho, será a vez de "Propriedade Privada" no teatro municipal Rivoli.
Para assinalar este ano de datas redondas os trabalhos apresentados foram proposta sua ou dos programadores?
40 anos de carreira, 20 anos de companhia e 60 anos de idade, esta interessa um pouco menos ao público. Em 2013 comecei a delinear o programa que devia constar. Em vez de lançar a companhia a novos projetos quis montar peças que não eram vistas há muito tempo. "Propriedade privada" não era vista há mais de 20 anos. Eu não pensei em ninguém, a minha linha de raciocínio foi escolher peças que eu gostava de voltar a ver. Claro que há peças que sem determinado intérprete são difíceis de voltar a ver. Comecei a contactar com instituições que poderiam estar interessadas em coproduzir. A vinda ao S. João era inevitável, mas está tudo muito espartilhado. Não se sabia ainda na época se eles nos poderiam coproduzir. O S. João era para mim um sítio muito sensível, com muitas memórias. A "Propriedade Privada" estreou aqui. Há um ambiente muito forte, uma relação com o público muito especial. Um sítio de bem-estar e isso é muito complicado. Pode existir no primeiro, segundo ano, mas depois já não existe. Aqui há amor. No (teatro) Dona Maria acontece a mesma coisa mas por motivos diferentes, há uma carolice, para os técnicos é a casa deles. Aqui é um fenómeno de grupo.
Houve um cuidado em mostrar repertório antigo da companhia?
O Nuno (Carinhas) queria a Sagração. No S. Luiz tínhamos "Pets" e a "Cidade", eram peças mais cortantes, têm mais a ver com o público do S. Luiz. Fiz a distribuição a pensar nos locais, tem a ver com o público. "Terra" eu acho que encaixa bem aqui (Teatro Nacional S. João), tem o seu quê de teatralidade, mas não é como as minhas outras peças com uma construção de personagem. É uma coisa física, mais de confronto, muito telúrico. Isto também é importante para o público que vem ver os meus espetáculos. Daqui a dois meses vão ver "Propriedade Privada" onde eu estava há 19 anos, há duas semanas viram no Rivoli onde eu estava há 28 anos, com "Treze gestos de um corpo" pela Companhia Nacional de Bailado e agora conseguem ver onde eu estava ontem com "Terra" que estreou em 2014. Isto é importante para saberem a história de uma companhia.
É doloroso para uma bailarina entregar os seus solos a outro intérprete?
Eu não decidi deixar de dançar. Neste momento não é uma decisão minha é um problema de saúde. Por um lado é importante passar o meu legado a outra geração é sinal de que não morre comigo. Por outro lado ainda estou demasiado viva para não me custar. Ontem sentei-me no mapple da cena e pus-me a olhar para o teatro e fiquei muito triste. Queria tanto dançar aqui. Obviamente quando alguém vai fazer 60 anos, sabe que o corpo tem uma longevidade. Dançar é muito exigente. Ter de parar por motivo de saúde... Mas depois ponho-me a pensar eu não tenho problemas, músculo esqueléticos, não é uma coisa das articulações, não são bicos de papagaio (risos). Isto é um problema vascular. Tenho a carótida obstruída, posso ter um AVC a qualquer momento. Mas... quando fizer os tratamentos todos, o corpo da bailarina continua aqui. O que significa que talvez possa voltar a dançar. Até mesmo por uma questão profissional eu tenho de me movimentar. Eu posso estar sentada numa cadeira a dirigir uma improvisação, mas claro que chega um momento em que tenho de me levantar e corrigir e tenho logo o meu assistente "Olga, olha o pescoço". Esse afastamento é doloroso porque não sou o que quero. Mas dizem que talvez possa ser só um ano. É também lidar com a morte sempre.
Pensa no dia em que vai deixar de ser bailarina?
Estou a dançar e nunca vou deixar. Se eu tiver que deixar a dança estou em estado vegetal. Há sempre coisas que posso fazer. Mais metida no meu corpo. Pensar a criação de uma forma diferente. Mas agora é levantar todos os dias e tomar os comprimidos. Vivo com um AVC constante e os médicos dizem tenho de pensar nisso e não pensar demasiado nisso. Desvia-me do meu centro natural. Há uma mudança grande na minha vida diária.
Esta pausa vai influenciar as próximas criações que fizer?
O tempo foi passando e passando e agora tenho de pensar no que vou criar para 2016. A minha cabeça está no mesmo sítio. Muita gente diz que vou ficar influenciada por esta situação, mas não me vai influenciar coisa nenhuma, porque não está linkado. Eu estou como os doentes de Alzheimer lembro-me do nome do meu melhor amigo de infância e não me lembro do nome dos meus filhos. Nunca tive de parar, nem quando estava grávida. Depois parei 1/2 meses mas foi algo muito orgânico. Quando coreografei "Treze gestos de um corpo" estava grávida de sete meses, deve ser por isso que a minha filha não consegue ouvir essa música de tanto a ter ouvido.
Gostava de coreografar para a sua filha, a atriz/encenadora Sara Carinhas? Ou de a ver fazer um trabalho seu?
Ela ainda não está no sítio para isso acontecer, ela precisa de espaço e de trabalhar com as pessoas da geração dela. Há um trabalho meu que ela gostava de fazer "Situações Goldberg", mas é muito difícil, parece todo improvisado. Hipernaturalismo, foi uma das críticas que teve. Muita gente achou que estava a improvisar, outros perceberam o trabalho que tinha era tudo marcado e acharam que era o topo da minha carreira. Mas vai ser muito difícil. Os atores têm outro tipo, de memória física. É como a dificuldade de dar um texto muito grande a bailarinos. Ela tem coisas do pai (Nuno Carinhas) e da mãe muito boas, é muito especial. Tem um lado intelectual do pai e uma parte instintiva minha. O pai tinha uma qualidade de movimento muito boa. O Nuno e a Sara têm um corpo igual, pernas compridas. Eu lembro-me de nós novíssimos sairmos à noite e eu só o queria ver dançar.
Em algum momento da sua vida pensou que poderia ter outra profissão?
Se eu tivesse tido outra profissão teria sempre a ver com a parte criativa. Gosto de fotografar e gosto de escrever. Houve uma altura em que me passou uma ideia da arquitetura e também ser química analista. Mas daquelas que fica no laboratório a descobrir as células, claro que aquilo não é nada assim. Era a química dos filmes. Eu fiz design de interiores e isso sim foi uma coisa que me ajudou imenso com as plantas e com as cores. Há sempre elementos cenográficos: terra, água, lixo, pigmentos.
Privilegia sempre a relação da cenografia com as coreografias?
A cenografia permite o diálogo da passagem do tempo. Os objetos ergonómicos, cadeiras, portas, janelas, permitem interação com o corpo. Em "Propriedade privada" a cenografia de Júlio Mendes Ribeiro faz uma relação espacial que permite a relação direta do corpo-objeto. Raramente tenho acessórios de leitura simbólica, mas na generalidade têm sempre uma utilidade. Os coreógrafos fazem a construção texto/história/cenário. Claro que Josef Nadj, Pina Bausch, Alain Platel são os mais fortes. Muitas vezes isso falta isso no teatro. Há encenadores que não arriscam. Os bailarinos são muito exigentes perguntam, sugerem. Para um ator dançar é um bicho de sete cabeças mesmo os das novas gerações. Não há intérpretes completos. Porque vais ver e o intérprete é a sua própria procura. O intérprete tem de puxar por quem dirige. Claro que ainda há muito encenadores e coreógrafos também que trabalham são dois passos para a direita e três para a esquerda. Eu ainda não cristalizei porque permito aos meus bailarinos ter esse diálogo. Podia ter ficado para sempre a menina dos "Treze gestos", mas não era o que me interessava.
Como analisa a formação de dança em Portugal comparativamente ao que era há 40 anos?
Há o Conservatório nacional muito ligado ao clássico. Depois há a Escola Superior de Dança que é muito desequilibrada, tanto tem bons professores que os tem, como outros não tão bons. E depois temos o Fórum Dança. Muita gente boa sai do Fórum Dança. Mas também na verdade não temos muitas companhias. Podem entrar na Companhia Nacional de Bailado 2/3 pessoas por ano. Entraram agora vários portugueses e prevê-se que vai ser uma geração que vai ficar muito tempo, não tanto no clássico, mas no contemporâneo. Não serão uma geração Ana Lacerda. Não temos essa tradição. E depois existem companhias importantes, e escolas incluídas em companhias a nível local como a do Paulo Ribeiro, em Viseu, ou a minha. Na formação F.O.R. Dance Theater dou-lhes ferramentas para entrar em qualquer companhia. Mas, tenho uma queixa a fazer esta geração de alunos não tem disciplina nenhuma. Não sei de onde é que isto vem. Eu dou liberdade. Não vão chegar a parte nenhuma. Falta-lhes disciplina e rigor. Eu nunca precisei de incentivo nenhum. Se precisas de sopinha à boca algo está mal. As minhas filhas são dessa geração e não precisam de nada disso. Há uma disfunção. Dou um exemplo, na escola F.O.R.Dance Theatre avisei os alunos que podiam ir ver os ensaios da companhia se quisessem. Ninguém foi. Falta-lhes curiosidade. É muito estranho.
Nestas décadas qual foi a melhor na dança portuguesa?
Nos anos 80 houve um boom na dança portuguesa. Foi uma época muito produtiva. Foi a da geração da Vera (Mantero), Clara Andermatt e do Francisco (Camacho). Eles são os grandes pilares. Eu assisti há uns anos a um estrangeiro que queria fazer uma plataforma de coreógrafos portugueses. Os mais jovens apresentavam peças de há cinco anos e a Vera apresentava as recentes. O que significava que os mais jovens tinham tido apenas uma peça que tinha sido mais mediática. Agora é diferente já se sente uma geração um bocadinho mais sólida. Não vou muito a espetáculos de dança. Porque fico muito influenciada e depois já não faço coisas porque alguém já fez. Eu não gosto nada de ver dança. A São Castro e o Vitor Roriz nunca consegui ver. Há sempre uma coincidência ou eles estão a estrear e eu estou em ensaio geral, ou estamos a estrear ao mesmo tempo. Eu só gosto de ver coisas muito específicas. Nada me fazia viajar. E fico irritada com isso.
Tem a visão deformada, vai à procura do erro?
Se vou à procura do erro? Não, os erros é que estão à minha frente e fico irritada. Como dizia a minha filha Sara com 5 anos "Eu gosto da dança que fala". Era de Pina Bausch que falava claro. Às vezes faço fins-de-semana de YouTube para ver espetáculos de dança. Leio artigos. E há coisas boas. A Tânia (Carvalho) ... os espetáculos dela são muito fora. Pressinto que estamos com uma boa geração. E a outra não morreu: a Vera, Francisco o Paulo. Claro que há coisas boas e outras menos boas. Ou melhor, há espetáculos ponte. Tem de haver a hipótese não do erro, mas de fazer a ponte. Esses espetáculos são importantíssimos para mim. Tem de haver espaço para os fazer.
Qual é a fórmula para estar 20 anos com uma companhia independente com um trabalho de qualidade?
Para estar 20 anos com uma companhia independente teve de haver apoios continuados. Uma lealdade com alguns agentes culturais. Instituições de fazer coproduções e digressões. Essa continuidade dá uma qualidade artística e profissional, é uma coisa contínua. Às vezes a nossa companhia é polémica. E isso é bom. Temos também a capacidade de ser uma companhia especial, porque não somos mainstream, mas também não somos underground. Temos público desde os 12/14 anos aos 80 e temos fãs. A visibilidade que a Gulbenkian me deu foi também importante. O meu nome ficou. A caixa do supermercado e a senhora da farmácia sabem quem eu sou. Nas pequenas cidades as pessoas vão atrás dos nomes. Olga Roriz? Essa senhora deve ser muito velha, porque o meu avô já a viu. Quando saí da Gulbenkian, durante algum tempo as pessoas não sabiam que eu tinha a companhia. Ainda hoje o cartaz diz Olga Roriz x2, em lado nenhum diz companhia. Essa possibilidade de ter o nome da pessoa. Companhia Olga Roriz. O público faz muito esse percurso pelos críticos, pelos jornalistas. Tive sempre muito cuidado com a imagem a nível fotográfico e essas coisas têm o seu preço. O saber produzir com pouco dinheiro. O Pedro Cal era genial para fazer cenários grandiosos com nada. Uma produção que parece brutal e que custa muito pouco. Isso foi uma muito importante. Não podia ter compositores. E os figurinos era eu que fazia. Muitas vezes vinha ao Porto, à Lina comprar roupa em segunda mão e depois fazia ajustes com uma costureira. Essas opções foram afunilando os gastos da companhia. Por exemplo a Anne Teresa de Keersmaeker e o Sidi Larbi Cherkaoui gastam milhares de euros. Irrita-me o dinheiro que gastam. Claro que também me irrita porque gostaria de ter um pouquinho mais. Mas se tivesse mais dinheiro era para dar outras condições contratuais aos meus bailarinos.
