Corpo do artigo
Foi o "Penafielgate" e o suborno do árbitro Francisco Silva, irradiado pela justiça desportiva e poupado pelos tribunais civis, em 1990, que criaram jurisprudência e originaram o "Apito Dourado", em 2004. Só em 1991, alarmado com a corrupção desportiva, o Estado correu a legislar sobre o fenómeno. Até essa data, o Código Penal apenas qualificava o acto de corrupção como prática exclusiva dos funcionários públicos... Ou seja, até 1991, não podia haver "Apito Dourado", observa o jurista e ex-director executivo da Liga, José Guilherme Aguiar. Ou como a deriva contenciosa da "indústria" obrigou à intervenção estatal e originou a crescente judicialização do futebol.
Novembro, dia 10, ano de 1990. Passara o Governo os últimos meses a legislar sobre o ordenamento jurídico desportivo, no que era o gatinhar da Lei de Bases do Desporto, quando estalou o célebre escândalo "Penafielgate".
Envolvido numa "cilada", antes do jogo Penafiel-Belenenses, o árbitro Francisco Silva foi apanhado em flagrante delito de suborno e imediatamente irradiado. Escapou quase ileso, apenas com punição dos regulamentos desportivos e censura da opinião pública, já que, à data, a legislação penal só qualificava a corrupção como acto praticado por funcionário público...
Sobressaltado com o "Penafielgate" e com o vazio legislativo, o Estado despachou-se a fazer o decreto-lei 390/91, de 10 de Outubro, criado, expressamente, para legislar sobre corrupção no desporto.
Decorridos 14 anos, o desporto profissional está sob a alçadada poder público. Diz o regulamento Disciplinar da Liga Portuguesa de Futebol (LPFP) "o regime disciplinar desportivo é independente da responsabilidade civil ou penal", ou seja, o interveniente apanhado em acto ilícito que revista natureza criminal terá de se haver com punição desportiva e dos tribunais civis. A FIFA e a UEFA torcem o nariz...
Tal como a tradição liberal e republicana reclama a separação de poderes entre Estado e Igreja, também o órgão que tutela internacionalmente o futebol proclama a "laicização" dos regulamentos disciplinares desportivos. A FIFA tem horror aos tribunais civis e reclama-se um superestado "secularizado", com justiça própria. Quando, como no "caso Bosman", tem de sujeitar-se às sentenças dos tribunais, leva um rombo na jurisprudência interna.
Os próprios regulamentos disciplinares da LPFP, prescritos por juristas, são um misto de lei interna e de Código Penal. Lê-se no ponto 4 do Artigo 6 "A Comissão Disciplinar, oficiosamente ou a instâncias de qualquer interessado, deverá comunicar ao Ministério Público [...] as infracções que possam revestir natureza criminal ou contra-ordenacional [?]".
Assim sendo, a propósito do "Apito Dourado", pergunta-se alguma vez a Comissão Disciplinar da Liga investigou o alegado caso de corrupção, ainda que oficiosamente? Se soube da suposta fraude, comunicou-a ao Ministério Público, "oficiosamente ou a instâncias de qualquer interessado"?
José Guilherme Aguiar, ex-director executivo da Liga, diz ter subscrito "dezenas de denúncias" ao Ministério Público, emanadas da Comissão Displinar, e que terá sido de uma delas, por ele despachada, no âmbito do processo instaurado ao então árbitro da primeira categoria Rui Mendes, que resultou o "Apito Dourado".
Estado só legislou sobre corrupção desportiva após o "caso" do árbitro Francisco Silva
Guímaro estreou tribunais
Em Portugal, só existe um caso de condenação por corrupção desportiva. O árbitro José Guímaro foi preso por ter aceite 500 contos, cheque passado por Manuel Lopes Rodrigues, pai do então presidente do Leça, para favorecer o clube num jogo com o Académico de Viseu, realizado em 1993 os leceiros ganharam (3-0), sagraram-se campeões nacionais da 2.ª Divisão B e subiram à então 2.ª Divisão de Honra. O Tribunal da Boa-Hora, em Lisboa, condenou, em 1996, Guímaro e Manuel Lopes Rodrigues por corrupção passiva e activa, respectivamente, mas o Supremo Tribunal de Justiça anulou parcialmente a sentença aplicada ao dirigente. Guímaro "apanhou" 15 meses de prisão efectiva. O Leça, que, entretanto, subira à primeira divisão, foi despromovido.