Em 2007, Erden Eruç, um engenheiro informático de 46 anos, decidiu dar uma volta ao planeta movendo-se apenas com os seus músculos e a sua determinação, ou seja, sem outros meios de propulsão que não fossem a sua própria força e vontade.
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Sem motores e sem velas. Nos oceanos remou. Sempre que chegava a terra, largava o barco e começava a caminhar ou a pedalar uma bicicleta durante milhares de quilómetros até chegar ao outro lado para começar a remar outra vez. A sua façanha é por muitos considerada uma das mais incríveis aventuras deste século.
Erden Eruç completou uma volta ao mundo em 1026 dias (sem contar as pausas) ao longo de 60.305 quilómetros rigorosamente gravados no GPS. Desses, 876 dias foram passados no mar. Atravessou duas vezes o equador. Tornou-se na primeira pessoa a ter conseguido remar os três grandes oceanos, o primeiro humano a remar da Austrália para África continental. Entre outros feitos, Erden Eruc é o homem que mais tempo seguido passou sozinho num barco a remos: 312 dias, quase 11 meses. É considerado o mais experiente remador vivo. E falou com o JN.
Que impacto teve a sua viagem em si a um nível existencial?
Quando comecei a minha viagem à volta do mundo, já tinha certeza que eu iria mudar. E fui descobrindo que tinha as qualidades essenciais para ser bem sucedido. A viagem exigiu o melhor de mim e eu tinha mesmo que me esforçar para responder a essas exigências. Ao testar-me com o que às vezes pareciam ser obstáculos intransponíveis, a viagem desafiou-me a superar-me para eu conseguir encontrar as soluções. Eu teria falhado se eu estivesse ficado aquém das suas exigências.
Foi ainda um banho de humildade ao tornar-se um objetivo maior do que a vida. Ao longo do caminho, comecei a perceber que a viagem não era sobre mim. Redefini o meu papel e aprendi que se eu servisse a viagem, para me tornar na sua voz ou no seu rosto, outros encontrariam significado nela. Isto aconteceu em todos os países que visitei. Aprendi a ter fé na humanidade e a ter confiança no próximo destino. Sinto que sou uma pessoa melhor por ter feito a viagem.
Uma vez afirmou que não estava a tentar conquistar a natureza mas a procurar sentir-se em harmonia e que estava a tentar tornar-se o mar. Consegue explicar melhor essa ideia?
A natureza é imensamente mais poderosa do que eu alguma vez poderei ser como indivíduo. Eu questiono sempre o uso omnipresente da palavra "conquista" quando é referida em explorações de aventureiros nos oceanos, nos polos, nas cavernas ou nas montanhas. Os aventureiros vão lá por um momento fugaz. Um oceano permanece para sempre e parece nem se importar. Ele está lá para a eternidade. Alguém afirmar que conquista a natureza é, no mínimo, presunçoso.
O sucesso não foi acidental. Fui um bom aluno a aprender os padrões dos oceanos nas estações, nos ventos, nas correntes e nas ondas. Antes da partida, tive que planear as trajectórias que eram estatisticamente mais propensas a resultar. E a minha luta foi permanecer nessas trajetórias que tinha projetado. Descansei quando o mar colaborou e lutei muito para minimizar os efeitos adversos quando o mar se opôs a mim. Num barco sem qualquer outra propulsão para além dos remos, eu não tinha outra escolha a não ser ler bem os oceanos.
Como conseguiu manter a sua sanidade mental ao longo de 312 dias consecutivos sozinho no oceano Pacífico?
Aí o tédio foi o maior desafio. Ter uma ligação com o mundo exterior através do telefone satélite ajudou-me bastante. Usei-o como um modem para enviar ou responder a e-mails. Escrevi um diário, li, fiz atualizações em inglês e em turco para dois blogs diferentes. Troquei ideias com a minha equipa sobre propostas e pedidos dos jornalistas e fiz teleconferências. Tudo isso me manteve ocupado, havia trabalho a fazer.
Estabelecer uma rotina também era importante. Dizem que são precisos 21 dias para uma pessoa estabelecer novos hábitos. Eu senti que depois de cerca de duas semanas sozinho no mar, aquela vida se tornara na nova normalidade. O dia 101 não foi muito diferente do dia 100. Não senti falta do bombardeamento de distrações típicas da vida na cidade. Senti-me mais produtivo e curiosamente mais à vontade ali exposto à natureza.
Uma tática que usei foi transformar tudo o que tinha a bordo em recompensas. Eu gostava de ouvir música e tinha livros em audio no meu iPod. Eu gostava das barras energéticas ou de guloseimas como chocolate. Eu gostava da pequena garrafa de vinho que levava. A criança em mim queria ter tudo isso ao mesmo tempo. O adulto em mim dizia-me que eu tinha de ganhá-los. O vinho na milha 1000. A música só na parte da tarde. O chocolate depois de mais de três horas de remo. Então dei por mim a domar a minha disciplina para me tornar mais hábil na sobrevivência no mar.
Hoje sente falta desses dias de isolamento no mar?
Sinto seguramente falta dos dias da minha circum-navegação. Durante a viagem, eu conseguia ter uma noção imediata dos efeitos do meu trabalho e isso foi gratificante. Essa relação direta entre a acção e os resultados motivou-me muito, entusiasmou-me, iluminou-me, eu estava em chamas. Constatei que o corpo humano foi projetado para o exercício de baixa intensidade durante longos períodos. Senti-me mais forte e saudável enquanto ia satisfazendo essa necessidade para estar em movimento, como se me conectasse com o nómada primitivo que espalhou a espécie humana das altas planícies da África para o resto do planeta. Foi essa intensidade que fez com que eu me tornasse na primeira pessoa na história a remar os três grandes oceanos. Foi essa energia que me ajudou nos momentos difíceis quando eu pensava em desistir. Acho que é muito difícil encontrar essa reação ou esse feedback positivo na cidade. Sinto que começo a murchar e a perder tempo se me limitar a sonhar com outras viagens. Preciso de encontrar os meios para começar fazer outra viagem antes que seja tarde.
Qual foi a situação mais complicada ou perigosa que viveu na sua circum-navegação?
Surpreendentemente, os segmentos mais perigosos da minha viagem envolveram sempre a mistura com outros veículos em movimento rápido nas estradas. Sobretudo os condutores distraídos que teclavam ou falavam ao telefone e se desviavam para a minha bicicleta. Eram uma grande ameaça. Fui projetado para fora das estradas na Tanzânia por causa de motoristas de autocarros que pareciam homicidas. Uma vez desloquei o polegar esquerdo, fiquei cheio de feridas e magoei a anca.
Pode ser um pouco confuso perceber as diferenças entre a sua circum-navegação e aquela protagonizada por Jason Lewis. Qual é a grande diferença? É o facto de a sua ter sido solitária?
A circum-navegação é uma viagem à volta do mundo que segue geralmente no mesmo sentido e passa pelo menos por um par de antípodas. Por essa definição, Jason Lewis é a primeira pessoa a circum-navegar o globo pela força humana. Ele começou em Greenwich, viajou quase sempre em direção a oeste em todo o mundo e alcançou o seu antípoda enquanto pedalava de bicicleta pela Austrália. Nas travessias oceânicas ele usou um barco movido a pedais chamado Moksha. Ele tinha, normalmente, um parceiro neste barco e eles iam alternando.
Tenho um respeito enorme pelo Jason. Ele levou 13 anos a completar a sua viagem. Foi atropelado por um motorista no Colorado. Partiu as duas pernas e feriu-se na anca. Mas recuperou e até avançou com uma missão educativa para as crianças das escolas. Viu-se obrigado a fazer algumas pausas para voltar a ganhar algum dinheiro para poder continuar. Levou uma eternidade mas nunca desistiu. E concluiu a sua viagem em 2007 enquanto eu estava a remar no Pacífico. A minha mulher, Nancy, estava no momento e no local da sua chegada em Greenwich e foi muito importante para mim poder felicitá-lo através do telefone por satélite.
Eu demorei 5 anos e 11 dias para completar a minha circum-navegação a propulsão humana. Quanto terminei tinha atravessado 12 pares de antípodas, quase como um grande círculo ao redor do mundo. A principal diferença entre a minha viagem e a do Jason tem a ver com o facto de ter estado sozinho nas minhas travessias oceânicas. Eu gosto de descrever a minha viagem como tendo sido a "auto-propulsão", ou seja, eu desloquei sempre o meu corpo através da minha própria força. Tive amigos a remar perto de mim nas partes que fiz em kayak ou a pedalar ao meu lado em alguns momentos que fiz de bicicleta. Gostei de ter companhia nas minhas caminhadas pela Papua-Nova Guiné. Eu não estava sozinho, mas nunca fui transportado, carregado ou empurrado.
Tanto eu como o Jason Lewis estamos Guinness Book of World Records 2014, em páginas opostas. Ele está distinguido como "a primeira circum-navegação individual pela força huma" e eu como "a primeira circum-navegação a solo pela força humana".
Como é que gostaria de ser recordado nas próximas gerações?
Os meus registos vão ser batidos mas os meus feitos pioneiros permanecerão. Já ficarei feliz se for lembrado como uma pessoa que honrou e viveu o seu sonho. Sinto que deixarei o meu legado se conseguir influenciar mais uma criança a preocupar-se com o meio ambiente ou envolver-se em esforços de conservação da natureza. E se sonhar em grande.
