
Olly Hicks
DR/Olly Hicks
Para além dos barcos a remos, não falta quem se aventure em longas viagens de kayak ou canoa. A maior parte das vezes são trajectos que não incluem grandes travessias oceânicas. Ou seja: aqueles que viajam de kayak têm mais tendência em seguir a costa e preferencialmente dormir em terra. Mas nem todos.
Olly Hicks, por exemplo, já ousou fazer travessias consideráveis. E não hesita em considerar que uma expedição de kayak no mar "é muito mais difícil, cansativa, desconfortável e perigosa" do que num barco a remos. Por motivos óbvios. "No barco tenho uma cama seca para dormir, posso levantar-me, dar uns passos e esticar as pernas". No kayak "estou preso no cockpit em toda a viagem: é aí que como, durmo, remo e faço todas as necessidades humanas. É quase como estar preso numa gaiola a fazer trabalhos forçados". Em comparação, resume, "o barco a remos é um palácio".
No final dos anos 90, o francês Kim Hafez atravessou o Canadá numa canoa ao longo de 7 mil quilómetros durante dois anos. Regressado a Paris decidiu partir novamente num kayak, e desta vez também com um cão, para uma viagem de quatro anos a percorrer o norte da Europa, a Gronelândia e o Canadá. A viagem é contada no livro "Nomade du Grand Nord".
No momento da partida, a sua irmã de 13 anos abraçou-o a chorar. Mas Kim Hafez nada podia fazer contra aquele apelo que o levava a rumar para as altas latitudes.
"A vida é curta e frágil e vale a pena ser vivida plenamente e exactamente como nós desejamos", diz ao JN. O canoísta remava durante o dia e quase todas as noites montava tenda em terra. Nem sempre o conseguia. Conta-nos que chegou a remar cegamente no escuro porque não conseguira encontrar terra antes de a noite cair. "Mas o mais difícil foi lutar contra o meu medo do mar, as grandes ondas e as fortes correntes na Mancha, no mar do Norte e no mar Báltico". O homem sofreu frequentemente com "as nádegas encharcadas e metade do corpo gelado pelo vento" e não raras vezes viu-se debaixo de bombardeamentos de relâmpagos. Mas notou que "estava demasiado cansado para ter medo". "Acho que o meu estado físico se tinha degradado ao ponto de alterar o meu discernimento".
Certo dia, na Gronelândia, naufragou em águas a um grau negativo. "Pensei que era o meu último momento e senti que seria idiota morrer assim mas não me arrependia de nada, eu tinha vivido exactamente como eu queria e eu estava feliz com essa escolha de vida", revela agora.
Kim Hafez vive actualmente na Noruega, dentro de uma casinha sem electricidade, água corrente ou telefone. Há pouco tempo recebeu uma mensagem de um leitor seu, confessando-lhe que o livro o tinha ajudado bastante no hospital enquanto tentava recuperar o uso das pernas depois de um acidente. "Senti uma imensa alegria por saber que os meus livros podem fazer algo mais do que simplesmente entreter", confidencia-nos Kim Hafez.
No capítulo das travessias em kayak, é conhecida a história dramática do australiano Andrew McAuley. Em fevereiro de 2007 desapareceu no mar ao tentar ser a primeira pessoa a atravessar o mar da Tasmânia até à Nova Zelândia. Depois de um mês a remar, e quando se encontrava a escassas dezenas de quilómetros do destino - supõe-se que a um ou dois dias do final - McAuley deparou-se com ondas gigantescas, ainda conseguiu lançar um pedido de socorro por telefone satélite. Mas acabou por morrer afogado. As operações de busca encontraram o seu kayak e alguns dos seus pertences, incluindo a câmara de filmar com que o remador ia registando a sua viagem. Essas imagens originais acabaram por dar origem ao impressionante documentário "Solo". Assista ao trailer.
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Em 1932, Oskar Speck, um eletricista alemão com 25 anos, perdeu o seu emprego em Hamburgo. Decidiu emigrar para o Chipre para tentar arranjar trabalho nas minas de cobre. Desceu de comboio até Ulm, no sul da Alemanha. Foi para a margem do Danúbio, meteu-se num kayak e desatou a pagaiar rumo ao seu destino. Pelo caminho mudou de planos. E teve a seguinte ideia: "Já agora, vou remar até à Austrália". A Austrália, qualquer criança sabe, fica no outro lado do planeta.
Foi uma odisseia que durou sete anos e quatro meses. O relato da sua viagem está recheado de peripécias do arco da velha. Pelo caminho foi roubado, agredido, apedrejado, alvejado. Mas também passou por momentos entediantes e chegou a dar aos braços 16 horas sem pausas. "A vida tornou-se uma triste e interminável monotonia de remo, com os braços e ombros doridos e todo o meu corpo a ansiar apenas uma coisa: dormir", escreveu. A dada altura montou duas pequenas velas no kayak para ajudar. Oskar Speck nunca cruzou grandes pedaços dos oceanos e foi seguindo as costas. Até porque nem sequer sabia nadar. Dormia quase sempre em terra.
Em setembro de 1939, duas semanas depois de Hitler invadir a Polónia, Oskar Speck chegou à Ilha Thursday, nas portas da Austrália. Provavelmente por ingenuidade, exibia uma suástica numa das velas. As suas simpatias nazis nunca foram esclarecidas e supõe-se que a bandeira lhe tenha sido enviada pelo correio, a meio do percurso. Quando o afoito viajante chegou, todo contente, a terra firme tinha dois polícias australianos à sua espera na praia. E disseram-lhe qualquer coisa deste género: "Muito bem, que grande viagem, parabéns, estamos impressionados - mas agora considere-se preso". Speck foi detido. Mais tarde, ainda chegou a fugir da prisão mas foi novamente capturado e permaneceu atrás das grades até ao final da guerra.
A proeza do alemão - fazer 50 mil quilómetros em kayak - foi reverenciada por várias gerações de canoistas ao longo das décadas. A australiana Sandy Robson é uma dessas pessoas. Em 2011 decidiu reconstituir a viagem de Speck. Voou até Ulm, pôs o seu kayak no Danúbio e lá foi ela. É claro que não conseguiu fazer exactamente o mesmo percurso devido às guerras no médio oriente e a inúmeros entraves burocráticos em algumas zonas na Índia. Atualmente, depois de 15.700 quilómetros, está em Labuan Bajo, na ilha de Flores, Indonésia.
"Isto por vezes é fisicamente exigente", confessa ao JN. E isso devido às "longas horas de remo, grandes distâncias, tempestades no mar ou o cansaço geral e as feridas devido ao sal". Psicologicamente também pode ser desafiante. "Existem momento em que me sinto frustrada por não falar a mesma língua ou cansada de responder todos os dias às mesmas perguntas ou de ser observada como se fosse um animal no jardim zoológico", desabafa. Há ainda a questão do medo de "crocodilos e pessoas fora da tenda durante a noite". Mas o mais difícil, garante, "é obter as licenças necessárias para todos esses países e cruzar as fronteiras neste mundo moderno".
Mas Sandy Robson está encantada com toda a experiência. Sobretudo com os contactos humanos. "Viajar de forma simples e viver num kayak com poucos pertences tem-me levado a perceber o que é importante na vida", confessa ao JN. "Como não posso trazer grandes coisas comigo, o importante é aquilo que faço as pessoas sentirem: e tudo isso se resume ao amor", aponta a australiana. "Sinto-me feliz pela ajuda que as pessoas me têm dado e pela bondade de gente que não conheço mas que saem do seu caminho para me ajudar".
A canoista australiana faz questão de aconselhar toda a gente a "fazer algo grande" porque "a vida é curta e é preciso vivê-la agora". "Basta começar", recomenda. "É incrível como as coisas se vão encaixando a partir do momento em que começamos a perseguir uma meta ou um sonho: as pessoas aparecem e ajudam". Não é preciso muito para ser-se feliz, alvitra Sandy. Para viajar como ela, por exemplo, "não é preciso ter um kayak todo sofisticado". "Normalmente o tipo com a canoa mais requintada deixa-a quase sempre pendurada numa garagem enquanto o tipo com a canoa velha e cheia de buracos é o que rema todos os dias". Fundamental é começar e "levar copos extra para oferecer chá às pessoas". "Em todo o mundo os cães falam inglês", garante. E remata a dica final: "Se por acaso ficares agarrado, podes sempre falar com um cão".
