
Nuno Cardoso, encenador, ator: "Devemos apostar naquilo que é o Porto e naquilo que somos nós, uns campeões"
Pedro Correia/Global Imagens
Venceu em março o prémio da Sociedade Portuguesa de Autores para Melhor Espetáculo do Ano ("Demónios", de Lars Norén) e esta semana está em cena no Porto em dupla dose: encena "O misantropo", de Moliére; e é o protagonista único de "Subterrâneo", de Dostoiévski. Teatro, memória e o estado do Porto: Nuno Cardoso, 45 anos, em entrevista ao JN.
Corpo do artigo
Num curto espaço de tempo encenou um espetáculo e participou noutro como ator. Que efeito é que este trânsito tem para si enquanto criador?
Eu já não fazia trabalho como ator desde "A Solidão dos Campos de Algodão" [texto de Bernard Marie Koltès, encenado por Nuno M Cardoso em 1999 e reposto em 2013), há mais de dois anos, e fez-me bem voltar ao palco. Refrescou-me para atacar o jogo do "Misantropo" de uma forma mais viva e mais consciente do que são as dificuldades que os atores têm, embora me tenha levado a fazer um jogo extremamente complexo e ainda mais difícil para os atores.
Habituou o público a espetáculos com elencos numerosos e agora aparece sozinho em palco, num espetáculo íntimo. Sentiu necessidade desse contraste?
Eu comecei como ator e encenador na Visões Úteis, de que fui membro, e foi aí que fiz o "Subterrâneo" pela primeira vez. Fiz depois também um conjunto de outros monólogos, mas a minha carreira como ator foi-se diluindo um pouco na de encenador. É sempre diferente trabalhar como ator, e sobretudo sozinho. Por um lado, como sou um bocadinho individualista, o facto de estar sozinho permite-me regular o meu tempo e auto exigir-me, portanto não me foi estranha a experiência, foi até agradável. Por outro lado, como encenador, também já fiz projetos com menos atores, como o "Demónios". Mas foi acima de tudo, até por causa da direção do Luís Araújo, uma confrontação com os meus vícios, com a perda de elasticidade que o pouco tempo em palco implica. Foi também uma espécie de pousio que me permitiu voltar a um elenco de nove pessoas, que nem é dos maiores com que trabalhei, e ter frescura para o dirigir.
Uma das suas vocações parece ser a de procurar nos textos clássicos uma forma de dialogar com o presente. E como vai realmente aos textos originais e não às reescritas contemporâneas, o que é que lhe parece importante para assegurar que eles mantêm a sua força e capacidade de interpelação?
Não acho necessário reescrevê-los ou reinterpretá-los para que eles sejam contemporâneos. Nem acho necessário modernizá-los, seja por cenografia ou figurinos, embora eu o faça. Acho que eles valem por si só. Acredito profundamente na premência destes textos, e talvez por isso me tenha assumido como encenador de repertório. Esquecê-los é abdicar do nosso património como homens e cidadãos, é abdicar de uma imensidade de pensamento. Daí o meu esforço. Eu procuro sempre nestes textos encontrar-me a mim próprio, ou encontrar uma crítica a mim próprio, e é daí que surge a escolha do texto. Tenho um grande amor à capacidade de invenção e de escrita dos grandes autores. Acho que é extraordinário os universos que alargam, os paraísos que criam, por mais tenebrosos que sejam. E tento mostrar aos outros a sua importância e também o prazer que se pode tirar deles. Não acredito que haja uma cena de crítica social tão intensa e tão cruel como a do segundo ato do "Misantropo", e tem 350 anos. A figura do misantropo é tão complexa, tão espessa, tão rebarbativa, que deixá-la desaparecer, não a comunicar, é para mim um crime de lesa-património.
Já trabalhou também com textos de autores contemporâneos, como Mayenburg, Sarah Kane ou Sigarev, mas raramente o faz com portugueses. Ainda não encontrou nada que lhe interessasse?
Encenei um texto do Pedro Eiras para o Dramat, o "Antes dos Lagartos", que me deu imenso gozo, mas não é uma prática comum em mim. Por duas razões: encenar autores contemporâneos portugueses exige laboratório, a possibilidade de receber os textos e trabalhá-los com os autores, e isso eu não tenho condições para fazer. E como sou um bocado misantropo, e pouco comunicativo, estou algo distanciado dessa realidade. Ultimamente tenho estado a desenvolver contactos para saber qual o teatro que é produzido no Líbano, após as "primaveras árabes", e estou curioso para saber o que a Elfriede Jelinek escreveu agora sobre os refugiados, etc. Tenho pouco acesso a textos portugueses recentes e também não criei a estrutura que me possibilite isso, até porque com a contração que sofremos, e para manter o tipo de trabalho que nós fazemos, que é de grandes dimensões e com grande circulação pelo país, acaba por escassear o tempo para pensar noutras coisas. Mas sim, gostava muito de criar alguma coisa com a dramaturgia portuguesa e conheço vários autores que acho que seriam interessantes.
Enquanto criador de teatro, uma arte que escapa à reprodução técnica, sabe que a sua obra só poderá sobreviver através da documentação, ao contrário do escritor ou do realizador de cinema, cujos objetos artísticos são perenes e replicáveis. Como olha para isso?
Com angústia. A primeira coisa a ir, em tempos de crise, é exatamente aquilo que seria gasto no vídeo, nas fotografias, nos materiais de promoção, nos textos de apoio. Depois, em Portugal, também não há crítica continuada que te permita ter um lastro. Quando estreei um espetáculo em França, em 2013, na semana a seguir tinha quatro críticas, passadas duas semanas tinha seis, aqui tenho uma, de vez em quando, e isso é documentação, memória. Portanto, custa-me um bocado saber que os meus espetáculos serão perdidos. Já falei com o Fernando, o nosso cenógrafo, para qualquer dia ocuparmos algum sítio e montarmos as cenografias todas que nos sobraram e criarmos uma grande festa, como as que eu fazia no ANCA e no TECA, a que poderíamos chamar, sei lá, a "conflagração da memória da Ao Cabo Teatro". A memória é uma coisa que me preocupa, mas também é algo com que temos de fazer as pazes se queremos, de facto, ser isto. É a nossa condição, o nosso traço distintivo.
Talvez seja também um dos grandes poderes do teatro.
Sim, porque tem a ver com a intensidade, com o efémero, e tudo o que demora menos tempo brilha mais depressa, ou brilha com mais força.
Como vê o momento atual da cidade no plano cultural?
As mudanças são mais do que evidentes. Com todo o trabalho encetado pela Câmara e pelo Paulo Cunha e Silva a cidade transformou-se. O Rivoli está vivo, há uma atividade, a cultura é vista como uma mais-valia. E isso é o mais importante. De repente, a cultura deixou de ser anátema para se tornar um porta-estandarte, e isso faz com que a cidade vibre doutra maneira. Ainda assim, é apenas um começo e para manter a vida cultural de uma cidade é necessário haver uma estruturação, que exige tempo e paciência, e portanto vamos ver. Mas, de qualquer forma, o trabalho está à vista.
Está otimista?
Eu estou sempre otimista, mas sou um otimista já com alguma rodagem. Por mais fantástica que seja esta experiência que a Câmara tem proporcionado, tudo isto é frágil e pode desaparecer de repente, como desapareceu o Porto 2001 ou a cidade emergente dos anos 1990. Além de que isto não depende só da Câmara e de nós, mas também do governo central e da sua política cultural. É preciso estudar a articulação das instituições com os grupos de teatro que têm uma forte identidade, e também com as escolas artísticas, de modo a criar uma continuidade e uma memória.
E este "Porto turístico" contribui para a dinâmica?
Não acho piada nenhuma ao Porto turístico, da "happy hour", mas não sou hipócrita para não reconhecer que é fundamental para o bem-estar económico e social da própria cidade. No entanto, é preciso diversificar e lembrarmo-nos que a cultura não se faz da transitoriedade, e o turismo vive da velocidade, da passagem e da repetição, e isso pode criar a não-evolução, o estacionamento, o que para a vida de uma cidade é pernicioso. Devemos apostar naquilo que é o Porto e naquilo que somos nós: uns campeões. Mas não falemos de futebol. [risos]
