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José Capela, arquiteto de 46 anos, fala ao JN sobre cenários, arquitetura e o espetáculo que parte do romance "Ele foi Mattia Pascal", desse siciliano genial que foi Luigi Pirandello.
Venceu recentemente o prémio de melhor cenografia da Sociedade Portuguesa de Autores com o trabalho que apresenta em "Pirandello", o espetáculo da Malavoadora que estará esta sexta-feira e sábado em cena no Teatro Rivoli, no Porto, no âmbito do FITEI, que elegeu este ano a cenografia como tema principal.
De que forma é que o universo de Pirandello, autor que se distinguiu por explorar o "teatro dentro do teatro", se reflete nesta cenografia?
Muitos textos do Pirandello, e este romance em particular, criam ambiguidades muito grandes em relação à identidade das personagens, e também em relação àquilo que pertence ao teatro e ao que está fora dele. Neste espetáculo, a história desenrola-se em função de uma personagem que vai reconstruindo permanentemente a sua identidade ao ponto de ir confundindo aquilo é verdade e mentira. A cenografia procura criar também essa ambiguidade entre o que é real e ficcional, explorando modos paralelos de representação, alguns bidimensionais [tela com fotografia do cenário] e outros tridimensionais [o próprio cenário], que se misturam e vão variando ao longo do espetáculo, criando esse jogo entre o que está mais próximo do real e o que é pura imagem. Há uma espécie de gosto pela criação de uma imagem que é um artifício, mesmo quando ela não é necessária. Esse gosto pela inutilidade é algo que me agrada muito.
O que é que mais o atraiu no universo do Pirandello, qual foi o seu "punctum"?
Acho que foi algo que tem a ver com o próprio percurso da companhia. Há um lado lúdico do teatro que a nós nos interessa muito, e a chegada ao Pirandello foi natural e quase uma oportunidade para fazermos um ponto de situação sobre várias coisas em que estávamos a trabalhar. Isto não quer dizer que façamos um teatro lúdico no sentido de ser um teatro comercial, mas há esse lado de entretenimento de que nós nunca quisemos prescindir e que acho que pode caracterizar o trabalho da companhia - esse sentido lúdico em relação às potencialidades da cena.
Foi desenvolvendo a sua ideia à medida que se foi construindo o espetáculo, já com os atores, ou o objeto estava criado antes dos ensaios?
Já estava criado antes dos ensaios, mas não acontece sempre assim. Há muitos cenógrafos que fazem o cenário nascer naturalmente, como se fosse deduzido a partir do que acontece nos ensaios. Eu nunca trabalhei dessa maneira, e a Malavoadora também não costuma funcionar assim. Nós ensaiamos sobretudo à mesa. O momento de sair da mesa e fazer o espetáculo é já muito tardio em relação ao que eu percebo que são os processos de outras companhias. Somos muito cerebrais, desse ponto de vista. Fazemos um trabalho sempre muito em volta da discussão, da produção do discurso, e o espetáculo vai sendo definido com base mais na argumentação do que na experiência no espaço. A minha forma de fazer cenografia tem a ver com isso, nunca deduzi uma cenografia dos ensaios, ela vai surgindo à medida que se vai pensando o espetáculo. E depois quando se chega à ideia ela é concretizada, mas claro que há questões espaciais que são importantes, não posso fazer um cenário no qual o espetáculo não caiba, ou que atrapalhe os atores. Há um compromisso com a movimentação dos atores.
E ideia para esta cenografia, surgiu de alguma circunstância particular?
A ideia para este cenário, esta relação entre o bidimensional e o tridimensional, teve muito a ver com a obra de uma artista [Jennifer Bartlett] que eu vi durante umas férias no Japão. Era uma tela com dois barcos, um preto e outro amarelo, e à frente da tela estavam os próprios barcos. Na altura já sabíamos que íamos fazer o Pirandello, e eu e o Jorge [Jorge Andrade, codiretor da Malavoadora] percebemos imediatamente que aquilo se relacionava com o que pretendíamos, com essa ideia das diversas maneiras de representar o mesmo, ou a criação de ambiguidade entre níveis diferentes de representação. Essa obra até me sugeriu a hipótese de criar uma cenografia que extravasasse o edifício do teatro.
Existe algum padrão na forma como aborda cada projeto cenográfico ou isso depende apenas das exigências específicas de cada espetáculo?
O único padrão que deteto é que o meu trabalho é sobretudo mental, porque na verdade uma coisa que nunca fiz foi andar a desenhar à procura da solução, nunca desenho para descobrir nada. E quando estou nos ensaios é para discutir dramaturgia, não é a partir da ação dos atores que eu posso deduzir seja o que for da cenografia. A mim agrada-me a ideia de que para cada projeto eu encontre uma ideia que se confunda com a própria dramaturgia do espetáculo. Esse é sempre o meu objetivo e estou numa situação privilegiada para o alcançar, na Malavoadora, porque partilho a direção da companhia com o Jorge, e por isso conheço cada projeto desde que se escreve a primeira frase sobre ele
Há uma tradição forte de arquitetos-cenógrafos. No renascimento italiano era habitual as cenografias dos grandes espetáculos serem confiadas a arquitetos, que se dedicavam também à produção teórica sobre o teatro, como Sebastiano Serlio, Bernardo Buontalenti ou Georgio Vasari. Como vê essa relação entre os arquitetos e a cenografia no panorama atual?
Do ponto de vista internacional, não sei dizer. Mas em Portugal há cenógrafos que produzem um trabalho de alta qualidade e que são arquitetos. Mas a relação hoje em dia é muito diferente daquela que havia no renascimento, até porque na altura a cenografia era quase sempre uma representação de elementos arquitetónicos. Hoje em dia, felizmente, a cenografia é muito mais livre. No panorama português, houve uma altura em que a cenografia esteve muito entregue aos artistas e não aos arquitetos. As reentradas dos arquitetos no mundo da cenografia vão tendo significados muito diferentes ao longo do tempo. Mas há uma coisa que é inegável: a questão do espaço é absolutamente central em cenografia.
Nesse sentido, e tratando-se a cenografia da construção de uma espacialidade, em que difere a sua abordagem a um projeto cenográfico ou de arquitetura?
Para mim são duas coisas que não se confundem. Há uma diferença fundamental e que é fácil de resumir. A arquitetura é feita para que nela aconteçam coisas, muitas vezes até usamos os espaços com aquilo a que o Walter Benjamin chamava uma "perceção distraída". Não temos obrigatoriamente um olhar muito consciente e analítico sobre os espaços que habitamos, e não precisamos de ter porque a função deles não é serem observados, é serem habitados. Há quem pense doutra maneira, mas eu não entendo o palco como um espaço para ser habitado nesse sentido. Acho que a maneira como se habita o espaço no palco é muito mentirosa, e o encanto dele é exatamente esse lado mentiroso. Eu posso sentar um ator numa cadeira que é profundamente desconfortável e ele fazer cara de quem está regalado. E não tenho nenhum problema com isso, acho esse artificialismo encantador. Enquanto na arquitetura aquilo que conta, de facto, é a maneira como o espaço é habitado, no cenário interessa sobretudo o ponto de vista de quem olha. A questão do espaço é comum, mas a maneira como se entende o espaço é bastante diferente. Apesar de eu ser arquiteto, nunca ambicionei transportar aquilo que são os instrumentos próprios da arquitetura para a cena. Aliás, pelo contrario: quando comecei a fazer cenografia ela significava para mim um âmbito de imensa liberdade que me permitia fazer coisas que nada tinham a ver com arquitetura. E vice-versa, porque a mim também não me interessa nada uma arquitetura que seja demasiado cenográfica.
