Afável, bem-humorado e com um pequeno derrame no olho esquerdo, Salman Rushdie conversou com o JN, no contexto do Folio - Festival Literário Internacional de Óbidos, sobre o seu último romance "Dois anos, oito meses e vinte e oito noites", que tem como protagonistas o filósofo muçulmano do século XII Ibn Rushd (ou Averróis) e uma figura fantástica, Dunia, princesa dos jinn, criaturas que entram em guerra com os humanos. Vários tópicos da atualidade foram também percorridos.
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O seu livro traz a memória de Xerazade, a lendária rainha persa que se viu obrigada a contar histórias para salvar a vida. No seu romance, as histórias são contadas por Ibn Rushd para acalmar o ímpeto sexual de Dunia. Está sempre no fio da navalha o contador de histórias?
De certa forma, sim. [risos] Eu entendo a ficção como uma forma de examinar a realidade que, se for bem feita, pode dar ao leitor uma experiência ainda mais intensa da realidade do que uma abordagem naturalista. Apesar do meu livro estar cheio de figuras fantásticas, ele fala de pessoas reais, que habitam um mundo real e enfrentam problemas bem reais. Fiz um grande esforço para tornar os lugares do livro o mais credíveis possível. Quando foi publicado em Nova Iorque, houve um jovem que veio ter comigo muito excitado por a zona dele, em Queens, ser retratada no livro. Eu perguntei-lhe se estava bem descrita, se era mesmo assim, e ele disse: "Yeah! É exatamente assim!"Isso foi muito gratificante, porque eu tentei que o terreno em que o livro se apoia fosse realista. Depois, há uma série de estranhezas que crescem nesse terreno. E eu quis sugerir que esse "tempo de estranhezas" de que o livro fala é aquele que efetivamente estamos a viver.
Ibn Rushed acaba por abandonar Dunia, quando é reabilitado como filósofo, e deixa-a com uma prole imensa. Será que a vida intelectual intensa é compatível com a vida familiar?
Acho que é difícil. Qualquer pessoa que tenha uma vida literária dirá que não é fácil. Conheço alguns exemplos de sucesso, como o Paul Auster e a mulher, que é também uma grande escritora [Siri Hustvedt]. Eles têm um casamento muito forte, e partilham muitas ideias, provocam-se intelectualmente. Portanto, nalguns casos, creio que sim, que será possível.
O livro menciona nomes como Aristóteles e Mel Brooks, Schönberg e Captain Beefheart. Aproveitou para fazer uma panorâmica das suas referências pessoais?
Sim, acho que isso é inevitável, fazer uma viagem por aquilo que nos foi ficando na cabeça. Na realidade, não sou grande fã do Schönberg, mas gostava muito do Captain Beefheart. Quando estava na universidade, em Cambridge, em meados anos 1960, dominavam os Beatles, os Rolling Stones, o Bob Dylan, mas eu estava mais interessado no Captain Beefheart e nos Velvet Underground...
E no Frank Zappa?
Sim, também, apesar da música dos Mothers of Invention ser frequentemente horrível. Eu gostava de vê-los ao vivo, havia um sentido performático nos espetáculos que davam, mas os álbuns eram difíceis de ouvir. Já o Captain Beefheart fartava-me de ouvi-lo, assim como aos Velvet Underground.
No seu livro, escreve: "As leis que governam o universo entraram em colapso". Há uma personagem na "Visita da velha senhora", de Friedrich Dürrenmatt, que diz algo semelhante no início da peça...
Isso é interessante. Sabe que eu, quando era jovem, fiz algum teatro e entrei numa peça do Dürrenmatt, "Os físicos", onde interpretei um cientista louco.
A minha pergunta era: sente que esse colapso está a acontecer atualmente no mundo?
Sim, acho que vivemos um tempo em que o mundo está a mudar tão rapidamente e de forma tão radical, talvez mais do que alguma vez eu senti, na política, na tecnologia. As coisas ficam obsoletas num instante. E essa voragem tem-nos destabilizado. A internet é uma coisa colossal e, como qualquer intrumento, não é uma entidade moral, não é boa nem má. Você pode pegar numa faca e cortar carne ou matar pessoas. Da mesma forma, a internet tem vantagens extraordinárias. Mas, por outro lado, a quantidade de "bullshit" é tão grande que torna difícil distinguir as mentiras da verdade. Além de que o anonimato gera comportamentos absolutamente bárbaros.
Mas o Facebook, pelo contrário, tem incentivado as pessoas a exporem-se.
Sim, há algo de muito estranho a acontecer em relação à ideia de privacidade. Hoje em dia é como se uma coisa só existisse quando é publicada a fotografia dessa coisa. Esta conversa que estamos a ter não teve lugar até que exista uma representação dela e outras pessoas a vejam. O meu instinto leva-me a estabelecer uma separação muito clara entre vida privada e vida pública. A perda do sentido de privacidade, esta fúria de publicar tudo o que se faz, é perigosa porque nos coloca à mercê de forças poderosas na sociedade que estão sempre interessadas em saber demasiado sobre as nossas vidas, e esse conhecimento pode ser usado contra nós. As pessoas parecem ter-se esquecido que é importante proteger certa informação. Acho isso preocupante.
Um especialista francês no Islão, Gilles Kepel, escreveu no seu livro "Terror no hexágono: génese da jiad francesa" que aquilo a que assistimos atualmente é mais "uma islamização do radicalismo do que uma radicalização do Islão". O que pensa sobre isso?
Acho que é um ponto de vista interessante, mas aquilo que está a acontecer é tão grande que não pode ser explicado numa só frase. Entre outras coisas, está a acontecer uma expansão, a partir da Arábia Saudita, de uma forma de jiadismo que era previamente residual e localizada. Ninguém estava interessado no wahhbismo, ou no salafismo, exceto a família real saudita, era um pequeno culto. Agora, temos centenas de madrassas a exportarem essas ideias, o que está a ter um grande efeito.
Nomeadamente na periferia das cidades da Europa.
Isso é talvez o mais preocupante: a radical alienação da sociedade por parte de muitos jovens muçulmanos. Há também outros que se afirmam secularizados e não têm qualquer interesse em "mullahs" ou em "burkinis". Estes fenómenos crescem de forma diferente conforme os países. A revolução islâmica no Irão, por exemplo, relacionou-se com a corrupção do Xá. Mas há, de facto, algo a acontecer no interior do Islão. Há quem pretenda que o terrorismo nada tem a ver com o Islão, para que não se criminalizem pessoas inocentes, e isso é um bom instinto, mas o facto é que estas coisas se passam dentro do Islão, e não ajuda nada fazer de conta.
Como viu a recente polémica dos "burkinis" em França?
Desaprovo completamente os "burkinis". Eu venho de uma família muçulmana da Índia e nenhuma das minhas familiares aceitaria usar um "burkini" ou um "niqab". Provalmente batiam em quem lhes tentasse impingir essas vestimentas. Eu pertenço portanto de uma tradição que rejeita todas essas coisas, que não as vê como parte do Islão, mas apenas como uma distorção, uma forma dos homens oprimirem as mulheres. Mas a ideia de haver um polícia a dizer a uma mulher na praia para tirar a roupa é também bastante estúpida. E fico contente que os franceses tenham recuado nessa legislação.
O escritor espanhol Arturo Pérez-Reverte disse, numa entrevista recente, que dentro de 20 anos haverá movimentos neonazis vitoriosos por toda a Europa. Partilha desta visão?
Tenho medo dela. Eu, pessoalmente, que vivo nos EUA, já lido com um problema grave, o Donald Trump. Mas ver a ascensão de políticos extremistas na Europa é bastante perturbador.
Entende esse fenómeno como reação à ameaça jiadista?
Sim, acho que é por aí. O aumento da xenofobia é um fenómeno global atualmente. A campanha do Trump baseia-se nisso, na supremacia branca, na xenofobia. Portanto, não se trata de um exclusivo da Europa, está a acontecer em todo o lado.
O Salman Rushdie é uma prova viva de que a literatura continua a ter capacidade de incomodar o poder espiritual. Acredita que consegue também perturbar o poder temporal?
Acho que sim. Mas tem sempre a ver com aquilo que se pretende. Eu, quando escrevi os "Versículos satânicos", não tinha qualquer motivação política, queria falar sobre a condição dos migrantes. A receção ao livro distorceu-o e politizou-o. Escrevi outros livros, muito mais políticos, que não geraram reações dessas. Eu não me considero um autor "empenhado", não escrevo para obter efeitos. Porque acho que isso limita os livros temporalmente. Eu aspiro a que as que as minhas obras me sobrevivam, que possam ser lidas depois de eu já cá não andar. E para os que livros permaneçam não podem estar agarrados a causas. Até porque, na época em que vivemos, os tópicos mudam rapidamente. E se um livro fica preso a algum em especial, não sobrevive. Ninguém se vai lembrar, no futuro, de muitos dos "temas quentes" do presente. Quando esses temas desaparecem, o que fica é o romance e a sua arquitetura ficcional.
Sente, tal como a personagem do seu livro, Mr. Geronimo, que parte da sua vida foi passada a levitar?
O que eu e ele temos em comum é um sentimento de alienação criado pelo desenraizamento, a dificuldade em pertencer a um determinado lugar. Eu entendo-o perfeitamente, mas felizmente já não vivo assim. Instalei-me em Nova Iorque há quase 20 anos e é onde eu sinto que criei raízes. Acho que os meus pés regressaram à terra.