
Gonçalo Velho, presidente do Sindicato Nacional do Ensino Superior
Gustavo Bom / Global Imagens
O presidente do Sindicato Nacional do Ensino Superior defende contrato para a reposição do corte de mais de 30% no financiamento e garante que docentes doutorados estão a ser contratados "à jorna, como à porta de uma fábrica".
O Ensino Superior está a perder uma média de 1400 professores por ano, garante Gonçalo Velho com base em números da Direção Geral de Estatísticas da Educação. O novo presidente do Sindicato Nacional do Ensino Superior (SNESup) quer travar uma batalha pela dignificação da carreira docente - que garante entrou numa espiral de degradação com doutorados contratados à hora, "como tarefeiros à porta de uma fábrica" - e pela estabilidade do emprego científico. O novo diploma aprovado recentemente pelo ministro Manuel Heitor, critica, não vai aumentar o número de cientistas e também se afasta do legado de Mariano Gago.
Como estava a carreira quando entrou e agora?
Entrei em 2000, no Politécnico de Tomar, onde tinha a equipa mais jovem, mais versátil e que conseguia captar financiamento internacional. O melhor desde então foi o regime transitório aprovado em 2009 por Mariano Gago, o pior a atual flexibilização do emprego científico.
Como se concilia a internacionalização das instituições com a precarização dos docentes?
Não é compatível. Se a nossa ideia é melhorar o ensino universitário com sol e mar é impossível. Temos de ter investimento. Só temos uma vantagem para atrair talento: estabilidade laboral. Se a destruirmos, tudo o resto será posto em causa. Veja-se o emprego científico está precário porque está ligado aos fundos estruturais. Quando agora tivemos a ameaça de Bruxelas acerca dos cortes dos fundos, isso podia significar o fim do nosso emprego científico que cairia, literalmente, como um castelo de cartas.
Não vai haver reforço em 2017.
Antes pelo contrário. O que está a ser feito neste momento no ensino superior é uma transferência dos custos do Estado para as famílias. Somos o segundo país da Europa em que as famílias mais suportam o ensino superior. Pior do que nós só a Eslováquia. O financiamento privado continua a ser absolutamente incipiente. Isto não pode continuar.
Há dependência do Estado?
Não, diria que se travarmos a fundo o investimento do Estado o privado não surge. O subfinanciamento é o primeiro problema que temos, tivemos cortes entre 30 a 40% das verbas num período muito curto. O que teria acontecido na administração pública se todos os outros serviços tivessem tido um corte igual?
Qual a percentagem de professores precários?
Nas universidades é de 35%, nos politécnicos de 55% e nas instituições privadas é de 80% - tarefeiros pagos à hora por recibos verdes, os chamados contratos de docência. Na Universidade de Coimbra - primeira a aprovar novas regras para os professores convidados a tempo parcial - há 640 contratados e 1008 professores nos quadros, ou seja, cerca de 39% de contratados, portanto a UC está acima da média do sistema universitário.
Teme o contágio dessas regras?
Além de Coimbra, recebemos queixas na Universidade do Porto, ISCTE, Évora, UTAD e até no Politécnico de Viseu. Évora foi a primeira não fundação a faze-lo, inicialmente foi a mais agressiva, mas atualmente Coimbra é a mais agressiva
E os professores não se mobilizam?
São os mais frágeis dos mais frágeis. Há faculdades com milhares de pessoas a contribuir para indicadores sem terem qualquer vínculo laboral. Nem sequer a tempo parcial. Têm outros empregos, que são o seu sustento, e depois têm o sonho de entrar no sistema universitário e escrevem artigos e trabalham nessa esperança. Temos um enorme problema de degradação. A carreira no Superior assenta na construção de percursos individuais, com concursos públicos para uma única posição, em vez da prática dos concursos nacionais e massivos do ensino secundário. A própria prática da cátedra enquanto "aquele que é suposto saber" leva muitas vezes a esse maior individualismo. Contudo existe um caráter coletivo na construção da Ciência, presente na própria ideia de comunidade académica. Essa ideia de comunidade coesa capaz de se mobilizar para se defender é a razão pela qual surge o SNESup.
Quantos professores saíram do sistema nos últimos anos?
Entre 2010 e 2014 saíram do sistema 15% dos docentes, incluindo contratados e de quadro, público ou privado. No total, 5718 saídas. Uma média de 1400 professores perdidos por ano. Nos politécnicos saíram 1551 docentes (14,2%). O privado perdeu mais de um terço dos professores, 32,6% (3801 docentes). Nas universidades a perda é menor, saíram 366 docentes (2,36%). Estas saídas acompanham o decréscimo do financiamento, sendo que até revelam alguma resistência pelas instituições, já que o corte nas verbas é mais acentuado. As saídas entre instituições privadas comprovam a sua incapacidade em captarem receitas.
E quantos passaram de contrato a tempo integral para tempo parcial?
Entre 2010 e 2013 o sistema universitário público aumentou o número de docentes em tempo parcial em 14%, sendo o único registo de aumento de docentes. Todos os demais dados são de perda, particularmente acentuada no Politécnico (32,49% passaram para tempo parcial) e no Privado (32,13%).
Qual a média salarial dos nossos docentes?
Em termos de vencimentos, segundo um estudo recente relativo ao ano letivo 2013/2014, o salário médio de um Assistente era de 102 mil dólares nos EUA (cerca de 90 mil euros), 78 mil no Reino Unido (68800 euros) e 63 mil na Alemanha (55600 euros); para um Professor Associado o vencimento médio era de 122 mil dólares nos EUA (cerca de 107 mil euros), 97 mil no Reino Unido (85600 euros) e 83 mil na Alemanha (73200 euros). Em Portugal o salário de um Assistente ronda os 36 mil dólares (cerca de 31 700 euros anuais) e o de um Professor Associado os 56 mil dólares (aproximadamente 49400 euros).
Quais as prioridades do seu mandato à frente do SNESup?
Proteger o emprego científico é uma prioridade, por isso a forte oposição ao diploma. Se não conseguirmos intervir, impedindo a flexibilização o país vai pagar muito caro. Propusemos que todos os bolseiros pós-doutoramento passassem a contrato se o quisessem. Fizemos as contas e o Estado pouparia vários milhões de euros. Ministro Manuel Heitor recusou. O número de pessoas envolvido neste programa é mínimo (329).
Quais as possibilidades de ingresso na carreira?
Diminutas. O legado de Mariano Gago foi muito importante mas exigia que se criasse estabilidade no emprego científico. Criou-se um exército de bolseiros que sabíamos teriam de ser incorporados. Tornaram-se algo reprimido no sistema. Os constrangimentos orçamentais não explicam tudo.
Como avalia o regime transitório recentemente aprovado para os docentes do ensino politécnico?
Um atentado a toda a estrutura e lógica de carreira, com doutorados colocados como assistentes. A manutenção dos assistentes na mesma categoria é algo que não só os prejudica em termos remuneratórios, como de direitos. Como já afirmamos, como doutorados estes colegas assumem diversas funções, seja na Direção de cursos, ou no direito de assento em diversos órgãos. É inaceitável que se crie uma bolsa de docentes de segunda, restringindo direitos óbvios e quebrando com o que é a própria base da carreira na relação com a qualificação. O que isto significa é um quadro institucional em que a legitimidade pela qualificação é quebrada. O mérito do doutoramento como qualificação avançada é terraplanado. A carreira académica tal qual como é conhecida em termos internacionais é quebrada de uma penada pelo ministério de Manuel Heitor.
Mais prioridades?
A dignificação da carreira e a sua representatividade. E o financiamento. É fulcral reverter o quadro de subfinanciamento do ensino superior. Devíamos ter um contrato para a legislatura que repusesse nestes próximos anos aquilo que foi retirado, portanto uma reposição de 30 a 40% das verbas.
Os cursos TESP (Técnico Superior Profissional), de dois anos, são o caminho para se atingir a meta 2020 de 40% de diplomados?
Sendo a voz da maior parte dos meus colegas: não. Portugal tem debilidades estruturais. Não queremos entrar em caminhos errados do passado que se revelaram uma fraude.
Os TESP são uma fraude?
Não estou a dizer isso. No passado a sociedade portuguesa sentiu-se defraudada com a qualificação que lhe estava a ser confiada, isso não pode acontecer com os TESP.
Está a referir-se ao Novas Oportunidades?
Aconteceu no passado, não pode acontecer de novo. Nos últimos relatórios da OCDE, países como a Alemanha, em que muitos seguem percursos vocacionais profissionalizantes como os TESP não continuam depois para licenciaturas. A OCDE classifica isso de erro. Devíamos captar era mais estudantes.
Como?
Os TESP não respondem aos 30 a 40 mil estudantes que desistem do Superior. Provavelmente algo está feito ao contrário, outra vez as debilidades do sistema. A novela das vagas é anual. Engenharia civil é o exemplo típico. A capacidade competitiva das nossas empresas de construção civil tem a ver com a qualificação dos seus quadros, a sua capacidade técnica e científica, isso é que lhes deu uma vantagem competitiva e o meio universitário beneficiou desta articulação. De repente acaba-se com tudo porque o mercado laboral mudou? Nós estamos a saber criar mercado? A formação superior tem a ver com outra visão do mundo. A geração que efetivamente usou o Erasmus para aprofundar os seus conhecimentos tem uma vantagem enorme. O mundo mudou. O ensino superior também. Temos uma geração altamente qualificada que faz parte desse novo mundo, a questão é se as decisões políticas fazem parte deste mundo ou não.
A fuga de cérebros começa cada vez mais cedo?
Sim. As elites cada vez formam menos os seus filhos nas universidades nacionais. Temos de conseguir dar resposta a isto: à primeira geração, oriunda de extratos socio-económicos mais baixos, que se licenciou e que agora tem os filhos a entrar no Superior e sabem que a qualificação compensa e a todos os outros que ainda não descobriram esta realidade e que infelizmente ainda são a maioria do país.
Que avaliação faz do ministro?
Na comunidade académica estamos habituados a avaliar-nos uns aos outros, infelizmente é de uma enorme desilusão.
