Corpo do artigo
A língua tem destas ironias: como a de dar o mesmo nome ao lençol que envolve um cadáver ou à tira de papel fino que embrulha o tabaco num cigarro. Há 75 anos, em plena guerra mundial, foi em mortalhas que se escreveu um dos textos inspiradores da paz e da União Europeia. Detidos na antiga cadeia italiana de alta segurança, no arquipélago de Ventotene, dois antifascistas redigiram um manifesto clandestino que clamava por uma Europa onde os países se unissem em estados federativos, como meio de evitar guerras no futuro. Escrito em papéis de cigarro, o Manifesto de Ventotene haveria de chegar à resistência italiana e daí aos movimentos aliados, como sinal de esperança.
Hoje mesmo, 75 anos depois, os resultados do referendo em Itália e das eleições presidenciais na Áustria são de sinal contrário e teme-se o pior. No primeiro caso, porque o referendo decorre sob a ameaça de falência do sistema financeiro italiano, e em ambos os casos sob a ameaça de crescimento da extrema-direita e do populismo, num ciclo eleitoral que se prolonga, depois, em vários países nucleares do projeto europeu, como a Holanda, a França e a Alemanha.
"Depois do Brexit e de Donald Trump, preparem-se para o regresso da crise à Zona Euro". O aviso é de Wolfgang Münchau, editor do "Financial Times". E a este junta-se agora um relatório do Banco Central Europeu que alerta para o risco de um "grave choque de confiança" nas economias da Zona Euro, prenúncio de desagregação.
Perante os maus presságios, faz todo o sentido que o presidente da República tenha convocado o Conselho de Estado para o próximo dia 20. A Europa é o único ponto da agenda. E, desde já, mesmo que não venha a constar das atas, posso garantir-vos o que, pelo menos um deles, dirá a Marcelo:
"É preciso encarar de frente a dívida e os desequilíbrios do euro. Uma nova explosão da crise do sistema capitalista ou do agravamento da situação na União Europeia pode ditar saídas inesperadas, pelo que é urgente estarmos preparados. Desde logo, passando para o Direito português os contratos da dívida externa, para que ela possa depois ser paga em moeda nacional e não em euros".
O aviso, em forma de desafio, é dos comunistas portugueses, que hoje terminam mais um congresso. E será levado a Marcelo pelo conselheiro de Estado Domingos Abrantes Ferreira, 80 anos, 11 dos quais na prisão, deputado, antigo operário, dirigente e funcionário do partido. Só não tenho a certeza de que Domingos Abrantes embrulhe o seu sonho europeu no mesmo tipo de mortalhas que saíram daquela outra prisão, há 75 anos, com a Europa em guerra.
* DIRETOR