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Num tempo em que toda a máquina mediática está voltada para os carnavais das grandes urbes, espelho de uma miscenização civilizacional imposta por outros carnavais do Mundo, especialmente do Brasil, quase já só podemos encontrar manifestações diferenciadoras nos rituais de Entrudo dos meios rurais, que continuam a assumir uma vertente identitária profunda. No Nordeste transmontano, por exemplo, continuam a ritualizar-se as expressões mais originais do Entrudo em Portugal, seja pela prática dos julgamentos públicos, queimas do Entrudo, leitura de testamentos, pulhas e contratos de casamento (em Santulhão, Espinhoso, Paradinha Nova, Pinela, Carrazedo...), seja pelos desfiles de matrafonas e caretos (Podence, Ousilhão, Baçal, Varge, Vilas Boas, Salsas...) que personificam seres sobrenaturais, herdeiros dos deuses diabólicos venerados na Roma antiga.
A fisionomia dos caretos transmontanos, com as suas máscaras demoníacas, impondo um misto de terror e diversão, mostra evidentes semelhanças com as divindades das festas Lupercais romanas que eram celebradas igualmente nesta altura do ano, em honra do deus Pã, uma figura que se apresentava com aspeto diabolizado, cornadura de bode e corpo peludo, perseguindo as pessoas, que fugiam aterrorizadas. Outras tradições de Entrudo representam também uma herança diluída dos velhos ritos romanos em honra de Saturno, o deus da agricultura. Nas celebrações a esta divindade, conhecidas como Saturnálias, era permitido que o poder dos senhores passasse provisoriamente para aqueles que faziam produzir os campos: os escravos. Era um tempo de inversão, prazer e exagero, em que estes passavam a ser livres, nas palavras e nas ações, podendo expor publicamente os seus senhores, criticando-os e pregando-lhes partidas.
Por isso, nada há que esteja hoje a ser inventado nos nossos carnavais. A expressão dos antigos rituais cá continua presente: nas comunidades rurais, com os caretos, julgamentos, queimas, pulhas, testamentos, onde os grandes senhores (padres, caciques, regedores, autarcas) foram e são os bombos da festa; e, no mundo mediático e globalizado das grandes urbes, com os desfiles de carros alegóricos onde são expostos e caricaturados políticos, ditadores, banqueiros, dirigentes desportivos e os demais polichinelos do costume. Daí que o Carnaval continue a ser o que sempre foi: o desejo de apresentar, por contraste, um ideal de vida.
*ESCRITOR E JORNALISTA