Começo pela notícia que o bastonário da Ordem dos Médicos (OM) escondeu dos leitores do JN. Na semana passada, o ministro da Saúde anunciou a sua decisão de proceder a uma auditoria ao processo usado pela OM para definir o número de médicos que iniciam anualmente a sua formação especializada no SNS.
A necessidade desta auditoria decorre de dois factos extremamente graves e preocupantes: no ano passado, pela primeira vez, 114 jovens médicos não entraram numa especialidade por falta de vaga e, este ano, esse número pode ultrapassar os 450 médicos.
Num país em que faltam tantos médicos e tantos especialistas, ninguém pode ficar de braços cruzados perante tão flagrante desperdício. Fez muito bem o Governo em não aceitar de olhos fechados o número de vagas indicado pela OM.
Foi sobre estes problemas e o papel da Ordem dos Médicos que escrevi um texto publicado na revista "Visão" (edição do dia 25) e ao qual o bastonário da OM decidiu responder em artigo por ele assinado, não naquela revista, mas aqui no JN (no dia 27). A resposta, em estilo pistoleiro, falhou o alvo. De facto o bastonário da OM contornou os temas sobre os quais escrevi.
O ministro da Saúde foi muito claro ao associar a auditoria à necessidade de assegurar "que não haja sombra de dúvidas sobre a atribuição de vagas e a capacidade real do país". O ministro tem toda a razão, há todas as razões para ter dúvidas sobre a forma como a OM está a atuar.
Porquê esta desconfiança, perguntará o leitor. É simples: é que a OM defende que há médicos a mais, havendo o risco de desemprego, e pretende cortar vagas nas faculdades para reduzir o número de médicos e evitar o desemprego.
E, claro, para provar que tem razão, a OM invoca precisamente a falta de vagas para todos os médicos fazerem o internato, vagas cujo número é a própria OM que decide! Para a OM o problema não está nas poucas vagas que abre, não está em haver vagas a menos mas sim médicos em excesso a concorrer a essas vagas.
Só por cegueira pode o bastonário dizer que há médicos a mais. Não passa um dia que a Comunicação Social não faça eco das graves limitações no acesso a tempo e horas aos hospitais e aos centros de saúde, às cirurgias que são adiadas, aos doentes que morrem nas urgências à espera de ser atendidos.
O bastonário defende a sua tese com um estudo de 2013 encomendado pela OM a uma equipa da Universidade de Coimbra. Repito o que escrevi: "A Ordem dos Médicos não tem qualquer estudo que valide a tese de que temos ou vamos ter médicos a mais" por duas razões muito simples: alguns dos pressupostos daquele estudo nunca foram verdadeiros e outros, passados apenas três anos, já deixaram de o ser.
Não há qualquer demonstração fundamentada do risco de desemprego entre os médicos. É corporativismo puro e duro de quem pretende eternizar a dupla perversidade do sistema: médicos a saltar todos os dias entre o SNS e os hospitais privados ou a passar de vez para os privados, deixando em massa o SNS. A fuga de médicos está a asfixiar o SNS.
O resto do texto não merece qualquer atenção da minha parte. O bastonário da Ordem dos Médicos quer arrastar-me para a brejeirice e a politiquice barata. Deixo-o a falar sozinho, é o seu estilo não é o meu. Faço apenas um comentário: dizer que o "BE está no Governo" e que "o BE é poder" não é um simples excesso de linguagem, é mesmo alucinação. Não é grave, trata-se. Com um banho de realidade.
* MÉDICO E DIRIGENTE DO BE
