Surdo como uma porta (apesar de ele dizer que não, que só ouve mal de um lado), o professor Tornesol é o meu personagem preferido das aventuras de Tintin. Também adoro o irascível capitão Haddock - a sua criatividade no insulto é uma moca! - e tenho um fraquinho pela dupla de polícias idiotas, Dupont e Dupond. E, como não podia deixar de ser, dedico um carinho especial ao nosso compatriota Oliveira de Figueira, vendedor de mão-cheia, capaz de impingir frigoríficos aos esquimós e aquecedores aos guineenses.
Não deixa de ser curioso que o mais insípido e insosso da luxuosa galeria de personagens desta série seja o que lhe dá nome - o próprio Tintin. A vida tem destas coisas.
Com três PhD (Física Nuclear, Cálculo e Astronomia), Tryphon Tornesol estreia-se em "O Tesouro de Rackham Le Rouge", construindo um protótipo de submarino individual, em forma de tubarão, que seria de grande utilidade a Tintin não só nesta aventura mas também na seguinte ("O Segredo do Licorne").
Impecável no seu sobretudo verde, com um chapéu da mesma cor a cobrir-lhe a careca, óculos redondos e barbicha, Tornesol é distraído como todos os cientistas, mas a surdez não assumida aumenta-lhe o alheamento da realidade e é mãe de saborosos e divertidos equívocos.
Hergé é genial a tirar partido do potencial cómico da surdez de Tornesol, o único dos seus personagens a manifestar sentimentos pelo belo sexo (mais uma razão para ser o meu preferido!) em "As Joias de Castafiore", em que revela a sua galanteria, ao inventar uma rosa em homenagem a Bianca Castafiore.
Para mim, "As Joias de Castafiore" é, de muito longe, a melhor de todas as 23 aventuras do Tintin. Ao longo das 62 páginas do álbum, Hergé captura a nossa atenção com uma intriga astutamente urdida, recheada de pistas falsas, enganos e mal-entendidos (o maior dos quais proporcionado pela surdez de Tornesol), até que chegamos à última página e percebemos que, afinal, não se passou nada, a esmeralda da Castafiore não foi roubada, mas antes levada para o ninho por uma pega - e tudo ficou na mesma, acabando como começou!
Durante 19 dias deste estranho mês de julho (meteorologicamente falando), esteve em cartaz, em centenas de páginas de jornais e de horas de rádio e televisão, uma crise política a que não liguei nenhuma - e ainda bem. Estou muito satisfeito por não me ter ralado com ela, pois poupei tempo (e tempo é dinheiro) e preocupações (e o stress faz mal ao coração).
Ao fim e ao cabo, a tal crise não passou de uma imitação reles da fina comédia de enganos com que Hergé nos brindou em "As Joias de Castafiore": na substância, não se passou nada. E tudo acabou como começou. Foi como mascar um chiclete. Um engana-meninos - ótimo para um livro de quadradinhos, mas péssimo para um país que balança à beira do abismo da falência. Mas enfim, eles lá sabem as linhas com que se cosem.
