Estar em Berlim é agradável, e penso que só um tolo diria o contrário. A cidade, antes capital e agora outra vez capital da Alemanha, transpira confiança, modernidade e edifícios de arquitetura arrojada e, nesta altura de festividades que batem à porta, está carregada de mercados de Natal ao ar livre onde se compra, se come muito e, pela amostra, se bebe ainda mais.
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Berlim é, no entanto, muito mais do que isso. Não era sequer necessário recordar que, há vinte e cinco anos, aqui caiu o Muro de Berlim. Basta querer olhar e atender a algumas coincidências. A primeira coincidência é daquelas. Não é a qualquer um, com efeito, que calha em sorte ficar num apartamento construído exatamente sobre o bunker mandado construir por Hitler e onde este se refugiou, acompanhado por alguns dos seus mais fiéis, quando da Batalha de Berlim, que ditou a rendição nazi. Não é também a qualquer um que calha, logo à direita do edifício, ter um pequeno jardim lá onde foram incinerados os corpos de Adolf Hitler e da sua Eva, depois de cada um ter recusado viver num Mundo sem Terceiro Reich. E não é a qualquer um que calha em sorte ficar instalado junto à Rua Hannah Arendt, a dois passos do local onde antes estava implantada a chancelaria alemã, que representou o poder imperial para depois quase ficar arrasada pelos bombardeamentos aliados e vir a ser apagada do mapa, em 1949.
Berlim, como algumas cidades, deve ter uma alma, que sobreviveu à tremenda destruição que se abateu sobre ela quando se aproximou o fim do tal Reich que fora prometido para mil anos. Que sobreviveu aos dois meses de terror e de vingança exclusiva das forças soviéticas de Estaline, outro louco não menos sanguinário que o Adolfo. Que sobreviveu à violação selvática de 110 mil alemãs pelos soldados que vinham do Leste. Mas esta alma berlinense, se afinal existe, é sofrida, um pouco mais subterrânea e menos impante do que as impecáveis bandeiras alemãs e da União Europeia que se veem desfraldadas por todo o lado.
Não é, evidentemente, que pensem nisto todos os dias, os berlinenses ou quem aqui passa, porque fosse assim e estavam todos internados. Mas, quem quiser olhar, consegue descobrir sinais e fantasmas por todo o lado. Vê o Hotel Adlon, lindíssimo, onde tanto acontece e tanto se passa na "Trilogia Berlinense" de Philip Kerr. Sabe das cicatrizes do Muro, onde se embevecem milhares de turistas. Ouve dizer que, junto à Potsdamer Platz, se conservou "intacta" a fachada de um edifício cravejado de balas, como símbolo da Batalha de Berlim.
Esta história em camadas persegue o visitante, de uma forma não necessariamente pessimista. É pensar, por exemplo, no espantoso memorial aos judeus assassinados na Europa, para que aliás olho enquanto escrevo esta crónica. Pensar na força da vontade de tantos, judeus e não judeus, que lutaram durante 17 anos pela sua construção e pela preservação da memória que alberga no seu subsolo, sessenta anos depois do fim da Segunda Guerra. Como disse um dos principais entusiastas da sua construção, "agora é mais fácil viver nesta terra".
Como sempre, a História ri-se de nós, irónica. Porque, quando em 1997 começaram as escavações para construir o memorial, descobriu-se que no local já existia uma outra estrutura em betão, com mais de dois metros de espessura. Era, imagine-se, o teto do bunker privado de Joseph Goebbels, um dos símbolos mais abjetos do antissemitismo. Que fazer com aquilo, arrasar ou manter? Berlim decidiu manter, selando muito embora o acesso, para evitar que saudosistas doentes pudessem reinventar o seu "mausoléu".
Agora, portanto, o que temos? Temos, em camadas, o bunker de Goebbels. Por cima do bunker, o museu que preserva a memória de milhões de judeus assassinados. E, por cima do museu, o memorial propriamente dito, composto por 2751 blocos de betão, alinhados, de diferentes alturas.
A maldade esmagada sob toneladas de memória? A imagem é fácil, mas não vejo porque lhe hei de resistir.