Os poderes do Presidente
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Há quatro anos, Pedro Passos Coelho celebrou uma vitória muito previsível nas eleições legislativas antecipadas que disputou. Por sua vez, o Presidente da República, que tanto trabalhou para forçar a demissão do primeiro-ministro do Governo anterior e precipitar a marcação das eleições, não cuidou sequer de disfarçar a sua euforia e logo se dispôs a atropelar o procedimento constitucional, para antecipar a entrada em funções do novo Governo de coligação do PSD e CDS. Com tantas provas de dedicação a este Governo, há quem comece a recear que Cavaco Silva possa admitir mantê-lo em funções, como Governo de gestão, até março de 2016, quando um novo presidente eleito finalmente o substituir. Embora pareça um cenário extremo, trata-se de uma possibilidade real que decorre das suas próprias declarações.
Com efeito, Cavaco Silva vem avisando que, depois das eleições legislativas que vai convocar para o mês de outubro, apenas dará posse a um Governo que desfrute de maioria absoluta na Assembleia da República. Justifica essa exigência em nome da estabilidade governativa que seria imperativo assegurar para gerir a fragilidade da situação financeira em que este Governo deixa o país, para cumprir os compromissos com a Europa e preservar a sustentabilidade da dívida. É certo que esta obsessão de Cavaco Silva com a estabilidade governativa não só é recente, como contradiz a sua prática de há 30 anos, quando, recém-chegado à liderança do PSD, em 1985, rompeu a coligação e provocou a queda do Bloco Central, para aceitar depois a chefia de um Governo minoritário. Tal como agora, também o país acabava de sair de um resgate financeiro sob a tutela do FMI e enfrentava as angústias da integração iminente na CEE, logo no final desse mesmo ano.
Por tudo isso, fomo-nos habituando a entender os reiterados apelos de Cavaco Silva ao consenso e à urgência de entendimentos entre o Governo e a Oposição como um mero exercício de retórica para disfarçar o seu notório défice de autoridade, sem outras consequências políticas. Contudo, se Cavaco estiver efetivamente determinado a exigir um Governo de maioria absoluta, poderá desencadear uma grave crise política. Porque, não podendo o Presidente dissolver a Assembleia da República nos últimos seis meses do seu mandato, como poderá cumprir o que promete, caso nenhum partido obtenha a maioria absoluta nem esteja disposto a coligar-se para a conseguir? A intransigência de Cavaco, constitucionalmente impossibilitado de convocar novas eleições, desemboca num impasse que, protelando a nomeação de um novo primeiro-ministro, implicaria a manutenção em funções do Governo de Passos Coelho, por tempo indeterminado.
Claro que a concretização de um tal cenário não é contemplada no texto da Constituição nem é compatível com a interpretação mais adequada da natureza e da extensão dos poderes presidenciais. A iniciativa presidencial em matéria de formação do Governo está estritamente limitada à nomeação do primeiro-ministro. Todos os restantes membros do Governo são nomeados "sob proposta do primeiro-ministro" e são responsáveis apenas perante ele e "perante a Assembleia da República". O Presidente não pode escolher o primeiro-ministro que muito bem lhe apeteça: está constitucionalmente vinculado à consideração dos "resultados eleitorais" e tem de ouvir previamente os "partidos representados na Assembleia da República". Também a aprovação do Programa do Governo é uma responsabilidade exclusiva do Parlamento. Como se vê, a Constituição não acomoda a possibilidade de uma ampla intrusão do Presidente na formação e na composição do Governo mas, de facto, também não exclui explicitamente a hipótese extrema e insensata de o Presidente se recusar, liminarmente, a nomear o primeiro-ministro de um Governo minoritário.
Com tantas demonstrações de incoerência e leviandade, mais vale prevenir que remediar! Compete, enfim, aos eleitores, devidamente informados e esclarecidos, ponderar todas as consequências das escolhas que irão fazer nas próximas eleições legislativas.