No meu tempo de adolescência contava-se uma anedota que rezava mais ou menos assim: um pequeno avião voava com o comandante e três passageiros, dois de raça branca e um de raça negra. Às tantas o comandante surge na cabina e comunica: meus senhores, ficamos sem motores, o avião vai cair e, para além do meu, só temos dois paraquedas. Perante os olhares de soslaio dos passageiros brancos para o passageiro preto, o comandante afirma: meus senhores, eu não sou racista, logo vou fazer umas perguntas e quem não souber responder fica sem paraquedas. Vira-se, então, para o primeiro passageiro branco, e pergunta-lhe: onde foi lançada a primeira bomba atómica? Hiroshima, respondeu o passageiro. Muito bem! Vira-se então para o segundo passageiro, também branco, e questiona-o: morreram mais de 100 mil pessoas nesse ataque? Sim, respondeu o passageiro. Muito bem diz o comandante e, virando-se para o passageiro preto, pergunta-lhe: qual o nome e o número do bilhete de identidade de todos os que morreram?
Tenho-me recordado desta anedota quando assisto ao papel de Cavaco no processo de nomeação do Governo. De facto, o homem que raramente tem dúvidas e nunca se engana; o homem que tinha todos os cenários pós-eleitorais possíveis na sua cabeça desde antes das eleições; o homem que não foi às comemorações do 5 de outubro mas teve tempo de ir passar dois dias à Madeira; este homem, dizia, parece-se muito com o comandante da anedota.
Coloca a questão na estabilidade e durabilidade do Governo. Mas não foi ele mesmo que nomeou Passos Coelho como primeiro-ministro, sabendo que ele não teria apoio parlamentar? E que fez um apelo velado à dissidência de deputados do PS para que viabilizassem esse Governo? Que estabilidade teria um Governo que passasse na Assembleia da República com o apoio de uns deputados dissidentes? Mas, ao mesmo tempo que é capaz desta benevolência enbevecida com os do seu partido, para um Governo apoiado pela Esquerda já exige durabilidade. Tese que faz caminho numa série de comentadores. Mas com que legitimidade se faz essa exigência de prova de duração? E quem a pode garantir com o mínimo de verdade? Alguém previa, em 1999, que Guterres, com o apoio de 50% dos deputados, se demitiria em 2001 na sequência da derrota do PS nas autárquicas? Ou que Durão Barroso, que tinha maioria absoluta, fugiria para Bruxelas na sequência da derrota nas eleições para o Parlamento Europeu de 2004? Ou que o primeiro Governo de Passos Coelho, nomeado em 2011, só não tenha caído em 2013 porque Portas mostrou quem é e "criou" um novo significado para o termo irrevogável?
Deixem lá o PS governar. O futuro é como o caminho: faz-se caminhando.
