A bastonária da Ordem dos Enfermeiros disse apenas o que há muito suspeitávamos. Nos hospitais, os profissionais de saúde, médicos ou enfermeiros - neste caso não importa -, ajudam quem se encontra em sofrimento, sem esperança de algum dia reverter a doença, a encurtar o caminho para a morte. Um gesto de humanidade, assim deve ser entendido. Ditas da forma que foram ditas, aos microfones da Rádio Renascença, as palavras de Ana Rita Cavaco assumiram a importância que a formalidade do cargo amplifica. E têm importância por isso. Numa altura em que cerca de sete mil portugueses assinaram uma petição para que a morte assistida seja despenalizada, as palavras da bastonária são um alerta para a necessidade de discutir o assunto, com frontalidade e clareza - deixando de ser tratado "debaixo dos panos", como tem acontecido até agora.
As declarações da bastonária são graves, sem dúvida, quando garante ter ouvido alguns médicos sugerirem que se aplicasse insulina a doentes para provocar um choque insulínico. Como de costume, às palavras da bastonária seguiu--se um verdadeiro desfile de abertura de inquéritos. Todos o vão fazer, do Ministério da Saúde à Procuradoria-Geral da República.
No atual quadro legislativo, Ana Rita Cavaco está a dizer que nos hospitais públicos se assiste à prática do crime de homicídio e é, por isso, tratada às escondidas. Independentemente dos resultados dos inquéritos, agora em curso, e dos esclarecimentos no Parlamento, uma vez que o PS chamou a representante dos enfermeiros de urgência à Assembleia da República, Ana Rita Cavaco suaviza o discurso.
Confrontada com a gigantesca onda de reações provocada pelas suas palavras à Renascença, a bastonária dos enfermeiros veio ontem aligeirar o quadro: esclarecendo não o que disse, pois isso não pode modificar, mas o que pretendia dizer. Para sossegar as consciências, garante que a eutanásia não é praticada no Serviço Nacional de Saúde, nem debaixo dos panos. Mas dentro das unidades hospitalares, locais de vida e de cura, muitos a discutem e equacionam como o caminho para pôr fim ao sofrimento. E, não menos importante, permitir uma morte digna.
É essa a discussão. Se um médico ou enfermeiro, perante o consentimento consciente do enfermo, pode ajudar alguém a morrer. Sem que o ato constitua um crime - tal como acontece em alguns países da União Europeia.
