O debate de 6 de novembro de 1975 entre Mário Soares e Álvaro Cunhal, que a RTP tão oportunamente recuperou, há dias, para a antena do serviço público, seria impensável à luz dos nossos dias. Não tanto pelo escaldante contexto político em que decorreu, pese embora o presente radicalismo entre Esquerda e Direita, mas sobretudo pelo formato adotado. "O programa, como diz a Imprensa, não tem limite de tempo, mas também não poderemos estar aqui por muito mais do que, no máximo, vá lá, duas horas", declarou, no preâmbulo, José Carlos Megre, um dos dois moderadores. Só se enganou, no máximo, vá lá, em quase duas horas.
Quem, em 2017, teria tempo, interesse e paciência para assistir a três horas e quarenta minutos de confrontação de ideias, com apenas um intervalo forçado pela necessidade de substituir as bobines de gravação? É verdade que os intervenientes carregavam uma pesadíssima bagagem política que transformava aquele combate numa histórica luta de titãs; que personalidades como as de Soares e de Cunhal não são facilmente igualáveis na espessura intelectual; que não havia Internet nem canais por cabo. Apesar disto tudo, há, julgo, um constrangimento que se sobrepõe: a eficácia da mensagem política é, hoje, e como em tantas outras áreas, refém daquilo a que o filósofo francês Gilles Lipovetsky apropriadamente chamou de "civilização do ligeiro".
Em vez de dois intervenientes a debater durante quase quatro horas, acostumamo-nos à ideia de ter de acomodar nove ou mais participantes num estúdio televisivo durante uma hora e meia. Não se aprofundam os assuntos, valorizam-se as frases--bala esculpidas para ecoar no ouvido do eleitorado. Analisam--se as expressões faciais, a cor da gravata, entrevista-se os entrevistados no final para avaliar desempenhos, potenciando, dessa forma, novas tiradas e novos factos políticos. Explora-se a escorregadela que determina o vencedor. Porque tem sempre de haver um vencedor. Ridicularizam-se as medidas avulsas, desmentem-se números. A política assume, dessa forma, a sua vocação plena como arte do entretenimento. Porque o importante é desmaterializar o discurso.
Eu sei que os tempos são outros. Já não estamos em 1975. E aos grandes conflitos ideológicos talvez já não esteja destinado um lugar no escaparate das utopias históricas ("Este é o tempo das utopias light", dizia, a propósito, Lipovetsky). Mas agora que nos despedimos de Mário Soares, é nossa obrigação não esquecer que só discordando uns dos outros, em liberdade e em democracia, é que evoluímos. É normal e é assim que tem de ser. Podemos desamigar as pessoas. As ideias não.
*EDITOR-EXECUTIVO-ADJUNTO
