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Aos 27 anos, Sam The Kid é um dos talentos mais seguros e admirados da nova música portuguesa. O rapper de Chelas lança agora "Pratica(mente)", o seu quarto disco, e confirma as expectativas que nele já se depositavam. São batidas e rimas com a métrica certa e um conteúdo que destila o lúcido espírito crítico e intervencionista. É um dos músicos do momento. Merece ser ouvido.
Sam The Kid vive em plena zona I de Chelas, ali a escassos metros do Liceu D. Dinis. O rapper desceu do seu sétimo andar num elevador onde alguém escreveu "Fuck Da Police"e encontrou-se com o JN, cá em baixo, junto a umas paredes com inscrições de vária índole como, por exemplo, esta "Sempre na vossa mira". Ao longe passam vizinhos que o cumprimentam com um assobio e o polegar erguido. Ei-lo, então, no seu habitat natural, e em discurso directo.
Jornal de Notícias / Sempre viveu aqui em Chelas?
Sam The Kid / Sempre vivi aqui e não me vejo a sair daqui, sinceramente. Talvez só se me juntasse com uma rapariga. Mas nem com independência monetária sairia daqui. Um factor muito importante para mim é o ambiente - e gosto mesmo deste. Sair daqui matava um pouco a cena. Gosto desta coisa do bairro, de conhecer as pessoas e de toda a gente me conhecer. Até a cena da cuscovilhice é fixe, uma cena bonita. Deve ser um pouco deprimente viver nos arredores, em dormitórios, e isso acaba por afectar a personalidade.
Este bairro é uma fonte de inspiração para a sua música?
Exactamente. Chelas é uma fonte de inspiraçao. Tenho músicas que falam de coisas concretas que só as pessoas daqui sabem do que estou a falar. Mas não faço só música para o bairro.
Esta zona é conotada com o crime e tem fama de ser perigosa. Isso é a realidade?
Agora vivemos momentos mais calmos. As pessoas não querem arranjar problemas dentro da propria área. Antigamente, numa geração anterior à minha, até havia uma certa tensão racial aqui a Zona I era uma zona mais branca e havia aquela cena do "tu não podes vir aqui e eu não posso ir ali". Agora é muito mais à vontade. Mas não te sei dizer se é uma zona perigosa ou não, man. Acho que é uma zona tranquila. Agora é uma zona à maneira, não é nenhum gueto. É claro que há sempre coisas que acontecem: ainda ontem recebi o telefonema de uma amiga a dizer que o irmão tiha sido preso. Mas se calhar, ontem, em Cascais um gajo qualquer também foi preso, nao é?
Há muito hip hop aqui em Chelas?
Há cada vez mais. Hoje em dia, no rap, as coisas estão mais massivas - há rap na televisão a toda a hora. É natural que as pessoas queiram fazer as coisas que estão mais na moda. Depois há pessoas que entram e desistem e outras que entram e evoluem. Tento estar atento. No outro dia fui aí a uma festa que até apareceu nos jornais porque deu tiroteio e o caraças...
Tiroteio?
Estava lá bué de pessoal de Chelas mas era tudo amigo. Tu não vais armado para uma festa na tua área - vais para lá ver amigos. Quem veio armado foi pessoal que veio de fora, estás a ver? Depois falei com um puto que lá actuou e que me disse que era o primeiro concerto dele, mas que teve pena que tivesse acabado em tiroteio porque estava à espera que eu fizesse lá umas rimas.
Os míudos mais novos do hip hop valorizam a sua opinião?
Tento sempre motivar as pessoas que começam a rappar. Há chavais que me mandam cds pelo correio e que me pedem a opinião. Sinto-me muito grato. E mesmo que as coisas estejam muito verdes, tento sempre motivar as pessoas. Primeiro digo as coisas boas e só depois digo as más. Por exemplo "Aqui estavas a ler e nota-se que não estás a ser convincente, as tuas dobras não foram muito precisas". Ainda anteontem estive aqui a ensinar um rapaz a mexer nos sons e a revelar os meus segredos.Não tenho problemas nenhuns em revelar as minhas técnicas.
Há quem não revele?
Não sou um gajo como aqueles djs que tapam a etiqueta do disco para as pessoas não saberem o que ele está a passar - antes havia um pouco essa cena, essa cultura do segredo e que eu não respeito nada. Quero explicar ao outro como faço para depois ele fazer melhor do que eu e eu aprender com ele. É assim que a arte evolui. No meus álbuns estreio sempre pessoal que grava as primeiras rimas. Quando o pessoal é bacano, eu sinto iá.
O hip hop português é um movimento unido ou existem rivalidades?
Em geral, o pessoal dá-se bem. Pode haver um ou outro atrito mas isso é normal em todas as áreas, não é só no hip hop.
As suas rimas são certeiras e nota-se que há ali muito treino e dedicação. Escreve todos os dias?
Estou sempre no modo esponja, ou seja estou sempre a absorver. Nunca desligo o botão nem me fecho para a criatividade. Mas até faço mais batidas do que rimas.
E lê muita poesia?
Tenho uma problema não leio livros compulsivamente. Gosto mais de ouvir poesia do que de ler poesia. Se leio poesia, não sei se estou a ler bem, estás a ver? Se for poesia bem recitada - como o Mário Viegas ou o Ary dos Santos -, parece que se transmite mais emoção. Interesso-me bastante pelo Mário Viegas e gravo tudo o que apanho dele.
Nas suas letras nota-se uma preocupação em salvaguardar a sua integridade artística. A indústria já tentou manipular a sua música?
Não, nada. Tenho liberdade total. Eu é que mando. Pode parecer de menino mimado mas sou assim por exemplo, sou eu que escolho o meu reportório e o single. É assim que vejo a cena: os meus discos são os meus filhos e quero que eles sejam bem tratados. E depois, nós, com o tempo, vamos aprendendo várias coisas: e ficamos cada vez mais frios. Se não tiveres manager podes ser engrupido. E um gajo fica a pensar: mas por que é que só estou a receber o dinheiro depois do espectáculo? É que há muito o cliché do organizador desiludido que diz que estava à espera de mais gente - mas tenho que sujeitar-me a essa merda só para ser um gajo simpático e bacano? Não: dá-me a guita antes. É que um gajo já foi enganado. E isso não é ser ganancioso.
O novo disco de Sam The Kid deve ser ouvido por todos aqueles que costumam torcer o nariz a tudo o que seha hip hop. Há uma série de preconceitos que podem ser detonados com a audição de "Pratica(mente)". Um deles é este o rap não é sinónimo de música simplista feita por miúdos de boné e roupas largas que cantam rimas básicas temperadas por "bués", "iás" ou "yôs" enquanto tentam surripiar o telemóvel do transeunte. Nada disso: mesmo não sendo eruditas, as letras e as rimas de Sam The Kid, retratam a visão lúcida de uma geração que não se acomoda na inércia ou na apatia. O artista não tem problemas em desatar a apontar ao dedo à própria classe de músicos, nomeadamente a todos aqueles que comprometem a sua arte em busca de mais dinheiro. Para mais, todas as rimas surgem em cima de tapetes instrumentais ricos em subtilezas e irrestíveis no apelo à dança.