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Chegou carta de um fiel leitor destas crónicas. Resumindo, diz que anda a reler o "imortal" Camilo e que ao voltar a folhear "A Bruxa do Monte Córdova" lhe surgiram várias dúvidas.
E especifica num trecho em que o romancista se refere à prisão "de um tal Pita Bezerra", ao descrever o trajecto do personagem Frei Jacinto de Deus fá-lo do seguinte modo: " ? encaminhou-se à Rua da Fábrica ? e quando chegou à Rua de Santo António viu grande chusma de povo?"
O leitor pretende duas coisas saber se aquela Rua de Santo António é a mesma onde o romancista, certo dia, comprou uns botins para Ana Plácido e quem foi o Pita Bezerra.
Comecemos pela primeira dúvida. Não, Camilo não aludia à antiga Rua de Santo António, actual Rua de 31 de Janeiro, mas sim a uma artéria que desapareceu com a abertura da Praça de D. Filipa de Lencastre e que se chamava, exactamente, Rua de Santo António da Picaria mas a que toda a gente, para simplificar, se referia, simplesmente, como a Rua de Santo António e que ligava directamente com a Rua da Picaria, ainda existente.
Era muito curioso o emaranhado de ruas, travessas e vielas que compunham o quarteirão que desapareceu com a abertura da Praça de D. Filipa de Lencastre a da Rua de Ceuta.
Desse tempo restam as casas do lado nascente daquela praça. Trata-se de um belo conjunto de moradias setecentistas entre as quais, a da esquina com a Rua da Picaria, que pertenceu a pessoas que tiveram laços de parentesco com os viscondes de Balsemão que viviam, como é geralmente sabido, no seu belo palacete do antigo Largo dos Ferradores, a conhecida Praça de Carlos Alberto dos nossos dias.
Nesse edifício da esquina com a Rua da Picaria funcionou, como é também do conhecimento geral, o tribunal que julgou Camilo e Ana Plácido que ali compareceram acusados de terem cometido adultério.
Na época, aquele "crime" podia ser punido com a pena de desterro para "a costa de África".
O sítio onde se encontra aquele friso de moradias era a Travessa da Picaria, que ia até à Rua do Almada. A artéria tinha continuação, depois desta rua, até à desaparecida Rua do Laranjal que desapareceu para a abertura da Avenida dos Aliados e a esse troço dava-se o nome de Rua dos Lavadouros.
Ao findar o século XIX a Travessa da Picaria era uma artéria muito movimentada. Era num dos seus edifícios que estavam instaladas a Redacção, administração e oficinas do célebre jornal "Diário da Tarde" que era dirigido pelo insigne jornalista Eduardo de Sousa.
A actual Rua de Avis era, por aquele tempo, a Travessa da Rua da Fábrica e era na esquina desta travessa com a rua do mesmo nome que ficava a célebre Casa da Fábrica onde, após a vitória dos liberais no Cerco do Porto, foram instalados vários tribunais. Num deles estava a ser julgado, a 20 de Março de 1835, o famosos caudilho miguelista, João Pita Bezerro.
No final de uma sessão de audiência, quando o preso recolhia a uma das celas da Cadeia da Relação, guardado por uma escolta militar, o povo arrancou-o aos guardas e matou-o à pancada arrastando depois o corpo até à Ribeira lançando-o ao rio. Durante o Cerco do Porto Pita Bezerra foi, segundo uma crónica da época, "o mais audaz de quantos caceteiros miguelistas enxamearam a esse tempo a velha cidade".
Consta da citada crónica que "todas as noites descia ao Largo de S. Domingos acompanhado de uma malta ignóbil e daí para cima o sanguinolento quadrilheiro espancava ou mandava espancar quantas pessoas encontrava e que, por não serem suas conhecidas, ele de imediato tomava como sendo hostis à causa de D. Miguel".
Conta mais o cronista "? Desgraçado que não fosse das suas relações ou não gritasse ao avistar a malta do Pita Bezerra, viva o senhor D. Miguel e morram os constitucionais, podia contar com a cabeça aberta e as costelas amolgadas porque o caceteiro, sem dar tempo a justificação alguma, cuspia nas mãos, levantava o cacete e gritava para os seus apaniguados, vamos e este rapazes! E era pancadaria de criar bicho?"
Caso para dizer que Pita Bezerra fez a cama onde depois o deitaram?