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Morreu o Papa Francisco e a comoção estende-se muito além da comunidade católica, até em quadrantes que não seriam os mais expectáveis. Muitos ateus, por exemplo, têm demonstrado pesar pelo falecimento do Pontífice, obviamente não pela comunhão religiosa, mas por um sentido de identificação ideológica. E é estranho pensar que muita gente que critica violentamente a Igreja pelo seu histórico papel na reificação do sistema patriarcal (que tanto tem oprimido as mulheres), pelo seu desprezo pela comunidade LGBTQIAP+, pelo silenciamento dos abusos sexuais a menores, pela sua aliança histórica com inúmeros ditadores e muitas outras máculas, tenha no Papa Francisco uma referência imune a essa pesada herança. Mas mais interessante do que a identificação dos ateus progressistas com o Papa Francisco é o louvor ao Papa Francisco por parte de católicos que estão ideológica e moralmente nos antípodas de tudo o que ele defendia. Os ateus gostavam de Francisco APESAR de ele ser Papa, quando grande parte dos católicos mais conservadores gostavam de Francisco por ele ser Papa, APESAR de tudo o que ele defendia. E, feitas as contas, o que ele defendia está mais próximo da raiz do catolicismo (a palavra de Jesus), do que advoga habitualmente o clube de fãs da Igreja, o que faz de Francisco uma exceção, quando teológica e axiologicamente devia ser a regra. Se analisarmos as declarações que foi fazendo ao longo do pontificado, podemos dizer que Francisco era um homem de Esquerda progressista. Defendeu a taxação das grandes fortunas, criticou a acumulação de riqueza como um objetivo em si mesmo, defendeu os migrantes, condenando quem alimenta o ódio contra eles para se promover politicamente (leia-se, a extrema-direita), escreveu muitos textos ecologistas, defendeu o direito a rir até de Deus, abriu as portas à participação das mulheres na Igreja, foi vocal na condenação da violência de género, contrariou o discurso que advoga uma corrida ao armamento, clamou pelo cessar-fogo em Gaza e, no último dia da sua vida, fez da Palestina o centro do seu discurso, dizendo coisas que, proferidas numa manifestação na Alemanha, davam direito a cassetete e silenciamento. Ainda assim, é irónico pensar que quando “declarações à Papa Francisco” são feitas por outras pessoas, é imediata a crítica a um suposto radicalismo ideológico e ao perigoso wokismo de Esquerda, por muitos dos que, a cada domingo, estavam dispostos a encher a praça para ouvi-lo pregar de uma janela. Ou que, quando, dentro da Igreja, lhe chamaram comunista, ele tenha reforçado que o amor pelos pobres é o centro do Evangelho, lembrando que quem está longe do Cristianismo são os que se afastaram da sua raiz solidária, humanista e redistributiva.