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Estou a escrever esta crónica, quarta-feira, um dia depois do apagão. Que dia bizarro. Pelo que percebi, ontem as pessoas dividiram-se entre dois grupos: as que detestaram a experiência porque ficaram sem comunicações, nervosas por não saberem o que raio se passava e as que absolutamente a-do-ra-ram. Mas adoraram mesmo. Li posts nas redes sociais tão entusiasmados, que é possível que segunda-feira tenha sido o melhor dia da vida delas, superando até o dia em que deram à luz o primogénito. Tenho a sensação de que se possa ter exagerado um bocadinho. "Foi incrível. Vizinhos a conversarem, as pessoas em comunhão na rua.." Fico louca com isto. Se é preciso um apagão à escala europeia para falares com o teu vizinho ou para serem simpáticos para a mesa do lado, tens de rever o que é que andas cá a fazer. Se para seres um humano decente é preciso uma crise energética, então não devias ser considerado apto a ter um contrato com a EDP. A única coisa que eu considerei minimamente positiva no apagão foi não ter de levar com a televisão aos altos berros da minha vizinha de cima. E com as horas a passar, posso dizer-vos que fui sentindo alguma nostalgia de ouvir pelo teto o Vasco Palmeirim a fazer as perguntas do Joker.
Da minha janela, vi dezenas de pessoas a acartar garrafões de água e pacotes de papel higiénico. O meu pânico começou aí: era uma imagem que cheirava a fim do Mundo. E dei por mim feita barata tonta, sem saber o que raio se passava, a pensar se eu própria também não deveria estar a açambarcar alguma coisa. Os semáforos não funcionaram e tivemos todos que nos lembrar daquelas aulas de condução onde aprendemos as regras da prioridade e rezar para que não tenha sido uma daquelas que pedimos a alguém para marcar presença por nós. Ora bem, um cruzamento, tenho um motociclo do lado direito e de repente um carro de bois à esquerda. O apagão já três horas e meia e de repente estamos nos anos 50. Fomos atraiçoados pela modernidade e valorizamos o analógico. A minha pilha de livros por ler passou o dia todo a fazer-me olhinhos e juro que até o meu maço de tabaco para as emergências esteve com um ar maniento só para me sentir culpada por estar há dois anos a fumar de um eletrodoméstico.
A meio do dia, quando finalmente nos conseguimos ligar, só nos apareceram notícias com "Alerta: apagão. Não há eletricidade em Portugal". OK. Diz-me alguma coisa que eu não saiba!!! Até aí cheguei eu, que estou a vasculhar a minha gaveta à procura do powerbank que foi carregado na última vez que fui para fora. Rezei pelos pernis que tenho no congelador e pelos meus amigos que vivem a Uber Eats. Faltar a internet só foi bom para passar ao lado das notícias falsas que circularam: foram os russos, foi um ataque informático, foram os chineses que cortaram um cabo, foram os ET que vieram carregar a nave. E, desde ontem que só oiço: "Vocês não imaginam o que é que aconteceu! Então, por volta das 11.30 da manhã fiquei sem luz em casa, depois deixou de haver rede e não consegui falar com ninguém. Depois a rede voltou mas depois, pelas 15 horas, dei conta de que já não tínhamos serviços nenhuns outra vez." Passámos todos por isso, Jorge. Tu não és especial, Jorge!!
Desde que voltou a luz que o algoritmo só me tem mostrado kits de emergência: lanterna, rádio a pilhas, carregador solar, chispalhada em lata. Mas isto está de tal maneira, que apanhei um vídeo há bocado de uma nutricionista que ensina a fazer um kit emergência low carb. Operação sobrevivência sim, mas não esquecendo a operação biquíni. Eu percebo. "Como é que querem estar quando vier o fim do Mundo? Em forma ou com refegos nas pernas? Isto só faz sentido se o fim do Mundo vier em forma de apocalipse zombie e uma pessoa quiser ser menos deliciosa para ser comida. Já vi vídeos de pessoas a cozinhar só com o recurso a enlatados. Comem a conserva, utilizam o óleo para fazer um minifogareiro, e de repente percebi que tudo o que precisamos para sobreviver ao apocalipse são latas de conserva e uma telefonia. Comprou-se tanto enlatado, que agora para se comer tudo o que está na dispensa, creio que um livro de 1001 receitas de atum em óleo não seja suficiente. A minha mania de preferir cozinhar com fogo tornou a minha cozinha na divisão mais bem preparada. Podia não ter a porcaria de um rádio a pilhas, mas ninguém tivesse pena de mim caso ficasse com desejos de uma caldeirada de bacalhau.
Durante o apagão, de repente, percebi que tudo o que precisamos para sobreviver ao apocalipse são latas de conserva e uma telefonia. Comprou-se tanto enlatado, que agora, para se comer tudo o que está na dispensa, creio que um livro de 1001 receitas de atum em óleo não seja suficiente.