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Eles chegam de manhã, gigantes adormecidos, e deslizam no horizonte como miragens de luxo. Os cruzeiros atracam nas cidades quase como quem entra num lar sem bater à porta. Trazem milhares de visitantes breves e apressados, que caminham pelas ruas com a pressa de quem vê, mas não sente. Tocam o chão e partem, deixando atrás de si um silêncio estranho e um peso que não se vê. Não pernoitam, quase não consomem, a não ser "souvenirs" iguais a outros. Não devolvem à cidade o que dela recebem.
Para trás ficam ruas saturadas, um ar pesado de enxofre, o som de motores que nunca dormem. Fica também o mar silencioso, testemunho da descarga de resíduos e de uma navegação que fere o equilíbrio marinho. Os cruzeiros poluem. Poluem muito. Mais que aviões, mais que carros. Um só navio pode emitir mais enxofre do que todos os carros de uma cidade média. Há algo de descompassado nesta dança entre navio e cidade, como um abraço que sufoca mais do que acolhe.
E as cidades-portos, já frágeis, ficam com o fardo: ar mais sujo, ruas apinhadas e pouco valor deixado no comércio local. A promessa de desenvolvimento desvanece-se, como espuma que se desfaz na maré. O impacto económico local é pequeno, mas o ambiental é profundo.
O desafio não é só técnico, é ético, político, humano. Que turismo queremos? Que legado deixamos? Regulamentar esta mobilidade é urgente, mas requer coragem: a de dizer não ao que brilha mas corrói, e sim ao que respeita, equilibra e cuida.
As cidades não são passadiços para visitas breves. São organismos vivos que merecem respirar. Planeá-las com afeto é também escolher o que deixamos entrar. Porque nem todo o progresso navega com bandeira limpa.
* Especialista de Mobilidade Urbana