Corpo do artigo
O bebé nasce assim: a mãe vai à loja e uma funcionária rompe o saco uterino. Se for preciso, mete-se o recém-nascido numa incubadora, mas sai mais caro e em princípio não adianta de nada. Basta pôr-lhe a fralda, vesti-lo, passar o código de barras na caixa e pagar.
Com o produto vem um termo de responsabilidade e um manual de cuidados: muitas empresas não fazem reparações, pelo que é preciso pegar-lhes ao colo segurando o pescoço com a mão, o que é um detalhe precioso.
Os vídeos dos bonecos hiper-realistas, que se tornaram o fenómeno das últimas semanas, têm fritado o algoritmo. Até ele se vê aflito para distinguir o carnal do silicónico – o que lhe deve dar um nó na cabeça: é que ele próprio, o nosso senhor algorítmico, talvez ainda não tenha percebido que é tão simulacro de nós como aqueles bebés.
Parece que no Brasil a maternidade reborn tem estado ao rubro. Abriram-se creches para esses bonecos, as mães levam-nos a passear em carrinhos de bebé, fazem-se piqueniques e festas de anos, e até há quem se queixe de discriminação. Detestam que lhes digam que são malucos e indignam-se quando levam as bonecas às urgências e os médicos se recusam a tratar delas. Aflitas, as mães pedem-lhes por amor de Deus, trate meu filho, que deixou de respirar.
Eu sei que toda a gente se encurrala uma vez por outra em ficções, mas o curioso neste caso é que a psicose atingiu o estatuto de cultura. O meu lado cínico só encontra uma explicação. É que fazer um bebé reborn requer muito tempo, exige mão de obra especializada e materiais caros. Quanto mais realista for o boneco, mais caro sai. Alguns bebés renascidos custam milhares de euros, em todo o caso mais baratos do que os bebés nascidos.
Quer dizer que a fantasia não é apenas maternal. É uma fantasia capitalista. E em último caso uma fantasia digital – porque nós queremos acreditar que aquela gente acredita. Queremos fazer parte da psicose para nos espantarmos ou indignarmos com ela. Sem nós, estes bebés nunca teriam saído da caixa.Espantando, eu também caí nisso: quando surge um vídeo de bebés reborn, dou por mim a pensar se a loucura da dona do boneco é verdadeira ou teatral. E o meu lado crédulo, literário, faz tudo para suspender a descrença. Tenho treinado tanto nos livros, que me parece perfeitamente possível aquelas pessoas se encantarem com os bebés de silicone, se até os mais baratos – e mais grotescos – têm alguém para os embalar.