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Independentemente do que aconteça a seguir, hoje deverá fazer-se história nos tribunais portugueses (o “deverá” é fundamental, depois de tantos anos de idas e vindas e de decisões desavindas): um ex-primeiro-ministro senta-se no banco dos réus, acusado de 23 crimes, incluindo corrupção. Não é, no entanto, uma história memorável, nem para o arguido (naturalmente), nem para a Justiça portuguesa (infelizmente). Porque foi preciso esperar mais de uma década entre o momento em que José Sócrates foi detido e o momento em que, finalmente, é julgado. Tempo suficiente, por exemplo, para que prescrevessem vários dos crimes investigados.
Uma Justiça que precisa de mais de uma década para ser aplicada não é bem Justiça. Apesar do que já se sabe sobre a forma desprendida com que o antigo primeiro-ministro se relacionava com os milhões à guarda do amigo Carlos Santos Silva (de quem eram de facto esses milhões é matéria a decidir pelo tribunal), ou do julgamento político e social que cada um tenha feito sobre isso (e haverá poucos portugueses que o não tenham feito), imagine o leitor por um momento que, no final, José Sócrates é absolvido. Quem o compensaria dos danos de mais de uma década? E que danos teria na credibilidade da Justiça portuguesa? E que democracia teremos, se não tivermos Justiça?
É por tudo isto, e não apenas pela estreia de um ex-primeiro-ministro no banco dos réus, que o julgamento que hoje deverá começar é histórico. Porque não é só o futuro de José Sócrates que está em causa, é a saúde e a credibilidade do nosso sistema democrático. Não se depreenda daqui que, para evitar problemas, o melhor é mesmo que o ex-primeiro-ministro seja condenado. O objetivo do julgamento e dos juízes que a ele vão presidir é perceber se um cidadão é culpado ou inocente dos crimes de que vai acusado. As consequências da decisão serão as que tiverem de ser e teremos todos de lidar com elas.