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Hoje percebi que me falta escrever uma crónica sobre bibliotecas públicas. Estou aqui há mais de quatro anos e só agora chego às bibliotecas, duzentas e tal crónicas depois.
É que um velho acaba de me pôr a mão no ombro e citar de cor, em voz alta e para meu proveito, frases de Eça, de Camilo, talvez de Junqueiro (quanto a este, é sempre um talvez, já que quase ninguém o lê). As frases ensinavam uma verdade maior, mas eu não cheguei a perceber qual, porque uma bibliotecária interveio. E o homem lá foi para o silêncio, lá onde teve de calar tantas outras citações de gente grande. Vejo-o da minha mesa. Acena-me e murmura: “Qualquer coisinha, desculpe lá.”
Metade de uma biblioteca é perturbá-la. A outra metade, não interessar o respeito pelos livros. Duas vezes por dia, alguém entra a vender livros e a querer de imediato aumentar o preço, ainda que os funcionários digam que não vendem nem compram. Uma vez por dia, alguém pergunta se é um centro de cópias. E sempre, a toda a hora, entram e saem os refugiados da rua.
Ao canto, o homem que joga todo o dia no mesmo computador, na mesma mesa. Atrás, o molho de chaves. É mais chave do que homem, leva-as ao pescoço aos cachos, aos molhos, caminha numa sinfonia de metal. E quando tosse ao ler o jornal, e muito tosse ele, parece que as chaves lhe batem palmas. Na mesa ao pé da janela, o grupo dos reformados, os três homens que partilham o jornal e comentam que isto, santo Deus, vai de mal a pior. O que vale é que já não estarão cá para ver, comentam.
Para estes, a biblioteca é uma coisa maravilhosa chamada tantos nomes que não biblioteca. Refúgio, companhia, ar condicionado, casa de banho, wireless, paz e casa. A função social das bibliotecas, mais do que a promoção da leitura, é juntar estas pessoas, dar-lhes um conforto de livros, um silêncio afinal cheio de entendimentos. E há os estudantes e os passantes e os pedantes, que não precisam de entendimentos mas gostam do silêncio.
Um dia, entrou na biblioteca uma velha senhora que arrastava um trólei com postais, cartas, revistas, apontamentos. Queria vender as memórias, mas ninguém lhas comprava.
Desgostosa, meteu conversa comigo. Baixinho, explicou-me os postais, as cartas, as revistas e os apontamentos e foi-se embora deixando-os na minha mesa. Ainda não sei o que fazer deles, mas aprendi que as bibliotecas também são encruzilhadas.
O autor escreve segundo a antiga ortografia