Disrupção tecno-digital e sobressalto político-cultural (I)
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Uma das facetas mais intrigantes do próximo futuro é aquela que diz respeito à aceleração e divisibilidade tecnológicas e sua transferência para os domínios da liberdade individual e da vida quotidiana. Refiro-me à transformação de necessidades individuais, de desejos pessoais e de serviços públicos em objetos de consumo digitalizado que, doravante, ficam ao alcance e ao dispor da internet das coisas (IOT), da conexão generalizada, da inteligência artificial e da indústria de serviços digitais personalizados.
Por outro lado, a conversão da indivisibilidade de um serviço público, coletivo ou social na divisibilidade de um objeto privado produzido pelo mercado e tornado possível pelo avanço tecnológico, pode provocar uma verdadeira revolução sociopolítica na oferta pública convencional via aparelho de Estado-administração. Veja-se, por exemplo, o que acontece neste momento com o DOGE, o designado serviço de eficiência dirigido por Elon Musk na administração americana. Os serviços públicos prestados pelo Estado e outras coletividades via imposto seriam, então, progressivamente substituídos por objetos privados prestados por empresas tecno-digitais via preço (ou assinatura). O Estado seria progressivamente reduzido à sua dimensão mínima. Acresce que, em contrapartida deste Estado-mínimo assim obtido, teríamos, porventura, um Estado-híper-vigilante no plano securitário que, no limite, nos poderá transformar numa comunidade híper-vigilante de sensores convertidos numa espécie de censores furtivos, porventura nas mãos de gente menos recomendável.
Para lá desta disrupção tecno-digital em larga escala, há, também, uma filosofia do risco digital que nos alerta para os perigos envolvidos.
Em primeiro lugar, a filosofia do risco digital avisa-nos de que precisamos de criar e estabelecer limites. Limites de natureza regulatória, em primeira instância, para recuperar receitas fiscais evadidas para paraísos extraterritoriais e, também, para segmentar, se necessário, grandes conglomerados tecnológicos e digitais que abusam da sua posição dominante. Limites na grande área dos direitos socio-laborais e profissionais sob pena de um grave retrocesso civilizacional. Limites bioéticos e biopolíticos, enfim, para impedir que uma plataformização excessiva e uma governamentalidade algorítmica abusiva acarretem danos irreversíveis para a organização da sociedade humana e o seu universo político-cultural e socio-antropológico.
Em segundo lugar, e a par da revolução tecno-digital que atinge os velhos aparelhos ideológicos de Estado, nós estamos absolutamente necessitados, à semelhança do que aconteceu no século XIX, de um sobressalto, uma revolução mesmo, na filosofia política e social pós-weberiana, nas ciências humanas e sociais, nas artes e na cultura, tendo em vista repolitizar e policontextualizar o que decorre do universo tecno-digital através, por exemplo, de novas propostas de buffer institutions para o novo espaço público da era digital.
Nesta linha de pensamento, ficam aqui alinhados alguns tópicos que nos permitem assinalar este tempo de disrupção: o ator prevalece sobre o sistema e os acontecimentos sobre a ordem (1), somos seres migrantes em viagem para o ciberespaço, para uma espécie de colónia virtual (2), o trabalho é uma categoria líquida e intermitente cujos direitos se dissipam facilmente (3), a revolução tecno-digital agrava o défice de literacia e, portanto, a desigualdade do acesso (4), a realidade e a verdade estão sempre em trânsito e são capturadas pela dúvida sistemática (5), as bolhas das redes sociais expropriam e empobrecem a linguagem e a cultura (6), a violência gratuita invade todos ambientes mesmo e, sobretudo, os mais íntimos (7), a reação populista e autoritária aumenta a ingovernabilidade das democracias liberais (8), a guerra das inteligências instala-se e aumenta a crise estrutural das ciências humanas e sociais (9), estamos em plena crise do agir comunicacional, a esfera pública foi capturada pele esfera mediática (10).
Estes tópicos mostram como chegámos a um verdadeiro ponto de rutura na aldeia global em que vivemos, se quisermos, um ponto de fuga antropológico e cultural. Sabemos como a modernidade segmentou, especializou, profissionalizou, em primeira instância a filosofia, depois a ciência, a tecnologia e a cultura, mas também sabemos que há limites para essa especialização, que gerou muitas zonas cinzentas, ângulos mortos, outras tantas externalidades negativas e muitas contradições entre a natureza, a cultura e a sociedade. Hoje, na aldeia global e perante o risco sistémico de colisão iminente, é imperioso reinterpretar, reagrupar, recompor competências, reduzir os ângulos mortos de natureza disciplinar, refazer as mediações e intermediações e promover um regresso aos bens comuns colaborativos, o terreno de eleição da natureza, da cultura, da ciência e da política. Ou seja, necessitamos de um sobressalto político-cultural e socio-antropológico, pois acreditamos que existem boas razões para o renascimento da cultura e sua repolitização no preciso momento em que assistimos a uma rápida reprogramação das mentes. Nesta linha de pensamento, a União Europeia e os Estados membros precisam de prestar uma atenção particular à grande área dos serviços digitais e da inteligência
artificial e sua mediação pela esfera mediática, pois a tecno-cultura é uma infraestrutura interpretativa da maior relevância política que está em permanente interação com a esfera mediática por via das redes sociais. Ora, a chegada da cultura tecno-digital desencadeou uma desconexão entre as velhas instituições e as novas culturas emergentes que precisa de ser resolvida com muita prudência e criatividade, sob pena de vermos emergir um triângulo potencialmente malicioso que junta a cultura e o espetáculo, a esfera mediática e o capitalismo de vigilância.
Notas Finais
No âmbito do universo tecno-digital a economia do conhecimento e da cultura é um recurso abundante que as plataformas e as redes distribuídas podem colocar ao serviço dos coletivos de cidadãos e este facto é, só por si, o princípio de uma revolução sociocultural se, para tal, evitarmos cometer alguns erros de palmatória. Sabemos como a funcionalização da cultura, a sua setorização, mantêm a educação e os media separados da cultura. O momento é de desconfiança em relação às grandes instituições culturais que são pesadas e burocratizadas e deixam nas margens muita imaginação e criatividade. As instituições culturais acabam por ser disfuncionais e esta desconexão precisa de ser corrigida. Ou seja, para se converter num verdadeiro sobressalto político-cultural, a economia do conhecimento e da cultura deverá constituir-se em uma espécie de caixa de ferramentas para lidar com os problemas existenciais, uma fábrica de ideias, de imaginação e criatividade, um novo reportório de opções fundamentais, um esquema de cooperação cognitiva e intelectual de largo espetro, da teoria e da criação ao impacto social. Uma verdadeira revolução nas ciências humanas e sociais que, sem contrariar a desinstitucionalização da cultura, se interroga sobre os nossos limites, os da linguagem e os do próprio conhecimento, o nosso lugar no mundo, o significado das nossas experiências, os valores e compromissos que regem as nossas relações com os outros, a nossa organização social e a relação com a natureza, sobre a melhor forma de articular a educação, o conhecimento e a cultura, nas instituições, associações, agrupamentos e coletivos de cidadãos, lá onde se recupera e alimenta o sentido de plataforma colaborativa, cooperação multiterritorial, comunhão solidária e as pontes de ligação entre gerações. Assim será, as ciências humanas e sociais assumirão de novo, no século XXI, a sua função primordial de regulação entre o ator e o sistema.