
Rita Júdice, ministra da Justiça, anunciou um pacote de medidas anti-corrupção
Foto: António Cotrim/Lusa
Agenda Anticorrupção apresentada pela ministra da Justiça inclui 32 propostas. Caráter vago e falta de prazos suscitam dúvidas.
O Governo pretende “reduzir a amplitude e função da fase processual da instrução” dos inquéritos e alterar o Código de Processo Penal para travar os recursos dilatórios para o Tribunal Constitucional. As medidas fazem parte do conjunto de 32 propostas da Agenda Anticorrupção, apresentada ontem pela ministra da Justiça, Rita Júdice. O documento é elogiado por pôr a corrupção no centro do debate político, mas criticado devido ao seu caráter genérico e à ausência de prazos de concretização.
O combate à corrupção já tinha merecido destaque no programa eleitoral da Aliança Democrática e foi considerado prioritário logo que Luís Montenegro chegou a São Bento. Tanto que o primeiro-ministro concedeu 60 dias a Rita Júdice para definir um conjunto de medidas para implementar nesta área.
Nos últimos dois meses, a ministra da Justiça pediu contributos a 30 entidades, falou com todos os grupos parlamentares e, ontem, levou ao Conselho de Ministros 32 propostas que pretendem aumentar a eficácia da luta contra a corrupção.
Entre as intenções do Governo está a redução da “amplitude e função” da fase de instrução, para que esta deixe de ser utilizada como um expediente dilatório para atrasar ou evitar julgamentos. A concretizar-se a intenção de Rita Júdice, a fase de instrução sofrerá limitações “no plano da produção de prova e do controlo incidente sobre a matéria de facto”.
Alterar o Código de Processo Penal para diminuir a possibilidade de recursos de condenações é outra proposta. O Governo quer identificar “práticas processuais inúteis e redundantes” e pondera “uma revisão do modelo de acesso ao Tribunal Constitucional”. Tudo para acabar com a morosidade na justiça.
“O foco está em obter maior eficácia na prevenção e repressão e também maior celeridade”, justificou Luís Montenegro. “Eficácia” foi uma palavra que a ministra da Justiça também usou para enumerar os objetivos da Agenda Anticorrupção delineada pelo Governo. “Não quisemos mudar tudo, quisemos fazer uma Agenda realista, sem dogmas”, afirmou.
Perda alargada de bens
O programa eleitoral da Aliança Democrática propunha a criminalização do enriquecimento ilícito, mas também, “em alternativa”, um mecanismo para o Estado “recuperar bens adquiridos por particulares através de atividades ilícitas, independentemente de uma condenação penal do proprietário”.
Agora, a Agenda Anticorrupção propõe a criação do “mecanismo de perda alargada de bens”, em que o tribunal pode decretar que casas ou carros de arguidos revertam para o Estado mesmo que estes não sejam considerados culpados. “O juiz tem de ficar convencido que os bens tiveram uma origem criminosa”, salientou Rita Júdice.
Esta e outras medidas têm de ser aprovadas no Parlamento e Luís Montenegro anunciou uma comissão eventual para acompanhar o processo legislativo. O vice-presidente da Transparência Internacional Portugal, José Fontão, considera “positivo” que a iniciativa do Governo tenha posto “o combate à corrupção no centro de debate político”, mas critica o caráter vago do plano. “O que foi apresentado não é um conjunto de medidas, mas uma simples agenda. O documento mostra uma intenção, mas só mais à frente, quando forem conhecidos os detalhes das propostas, é que conseguiremos dizer se é ou não útil”, defende.
Medidas
Regulamentar lóbi
A atividade de lóbi terá regras impostas por lei. Os lobistas terão de se registar e revelar quais são os interesses que defendem. Terão ainda de cumprir um código de conduta.
“Pegada” legislativa
O Governo terá de registar todas as interações com entidades externas e consultas realizadas ao longo do processo legislativo. Essa informação será pública.
Publicitar sentenças
Publicitar as decisões judiciais de todos os tribunais, incluindo de primeira instância, como forma de contribuir para a transparência do sistema judicial.
Criar lista negra
O Governo quer proceder à criação de uma “lista negra” de fornecedores do Estado, baseada nos impedimentos previstos no Código dos Contratos Públicos.
Juiz com mais poder
“Reforçar os poderes de condução e apreciação do juiz, dando-lhe um maior poder de apreciação de requerimentos e de gestão do processo, conforme as necessidades de cada causa” é outra das propostas.
Delação premiada
Os arguidos que forneçam informação sobre crimes cometidos por outros intervenientes serão ainda mais premiados.
Agentes da justiça com mais dúvidas do que certezas
Mais do que certezas, a Agenda Anticorrupção criou dúvidas nos agentes da justiça. O Sindicato dos Magistrados Ministério Público (SMMP) não encontra no documento, por exemplo, um prazo concreto para a contratação de funcionários. E a Ordem dos Advogados (OA) mostra-se preocupada com uma eventual redução dos direitos dos arguidos.
“Várias das medidas apresentadas são bastante importantes e algumas até foram propostas pelo SMMP”, elogia o dirigente sindical Carlos Teixeira. A regulamentação da atividade de lóbi, a “pegada legislativa” e a perda de bens alargada são algumas das propostas do SMMP acolhidas pelo Governo.
Carlos Teixeira gostaria, no entanto, que a Agenda Anticorrupção estipulasse, desde já, um prazo para a entrada em vigor das medidas apresentadas. “O documento é uma agenda que tem de ser concretizada e é necessário haver uma calendarização”, sustenta.
Até porque, realça o procurador, “sem o reforço urgente de meios humanos e técnicos”, nada se consegue no combate à corrupção. “É fundamental a contratação de magistrados, oficiais de justiça e peritos, e não vejo nenhum prazo para concretizar esta medida”, avisa.
Também a OA confirma que o Governo integrou algumas das suas propostas. Porém, ficou inquieta com o que ouviu de Rita Júdice. “A perda ampliada de bens é uma questão que nos preocupa. Poderá inverter-se o ónus da prova”, refere o vogal do Conselho Geral.
Nuno Ricardo Martins acrescenta que a diminuição da possibilidade de recursos de condenações também gera apreensão. “Parece-me que estamos a ir além do que é necessário e tenho dúvidas que este seja o caminho mais adequado. Corremos o risco de haver abusos e injustiças”, alerta.
Aliás, para Nuno Ricardo Martins, a fase de instrução de um inquérito “nunca pode ser vista como um expediente dilatório” e, portanto, não há razões para alterações.
“Era mais importante dar ênfase a medidas relacionadas com a prevenção e promover a educação cívica desde tenra idade”, frisa.

