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Sente-se uma podridão no espaço público: abriram-se as comportas, veio a enxurrada e ficámos cobertos de lama. E assim andamos, a acessos de lama que tudo contaminam, conforme se lembre o Chega de mais uma ignomínia.
Certamente lhes dá muito jeito chorarem como lesados por delito de opinião, pondo-se numa espécie de posição dual: por um lado, vítimas de um verniz social que impede os outros, os hipócritas, de dizerem as verdades que eles dizem; por outro, paladinos de uma maioria oprimida à qual dão voz, os tais portugueses de bem, e por isso justificados nos meios. Na boa escola de Trump, não jogam o jogo da gente civilizada, por isso colhem os ganhos duplos da infracção. Ou seja, paradoxalmente, a eles se aplica a ideia de quanto pior, melhor.
E ei-los numa nova enxurrada, a citação dos nomes próprios dos filhos de imigrantes por parte de André Ventura na Assembleia da República, replicando o que antes Rita Matias fizera num vídeo das redes sociais entre sorrisinhos e com direito a apelido, não fosse a identificação ficar incompleta. André Ventura acaba a sua intervenção berrando: "Estes senhores são zero portugueses!", e mais tarde, confrontado pelos jornalistas com a autenticidade da lista, já para não falar da ética do acto, mete os pés pelas mãos. A lista é conhecida, a fonte desconhecida.
Detesto cair na armadilha da indignação, mas não sou de sangue frio. Compreendo perfeitamente Isabel Mendes Lopes, a deputada do Livre que foi às lágrimas com isto. Afinal é ali, no Parlamento, que devemos defender os mais frágeis, dar abrigo aos necessitados, cuidar da coisa pública. Haverá alguém mais frágil do que uma criança imigrante? Há certamente: uma criança imigrante cujo nome foi exposto com ódio pela terceira força política mais votada do país.
E lamento ter de dizer o óbvio, que esta falta de ética, de compaixão, esta falta de humanidade traduz, como afirmou Pacheco Pereira no último "Princípio da incerteza", uma mudança cultural e civilizacional que trouxe ao coração da nossa convivência o antagonismo, a confrontação, a hostilidade e a violência.
Quer dizer que entrámos no reino das pulsões mais instintivas, daquela reacção primária que a nossa natureza por vezes nos leva a ter – mas que o intelecto educa, informa, controla. Nesse reino, nenhum argumento racional é atendível, nem há limites para a pouca-vergonha: ganha quem aumentar a parada. Instrumentalizar os nomes de crianças foi mais um passo no novo paradigma.
O autor escreve segundo a antiga ortografia