Na época passada registaram-se 595 casos, um recorde desde 2019/20. Nem todos os jogos têm policiamento, o que explica, em parte, os comportamentos de risco.
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A violência no desporto, e no futebol em particular, tem vindo a aumentar desde a pandemia, segundo dados disponibilizados pelo Relatório de Análise da Violência Associada ao Desporto (RAViD) e o futebol de formação segue a mesma tendência, com um crescimento de 109 para 595 ocorrências registadas pelas autoridades entre 2019/20 e 2023/24. O número de casos cresceu progressivamente nas últimas três épocas e deixam os intervenientes do futebol alarmados perante um tema tão sensível e, ao mesmo tempo, atual.
Os incidentes registados no sábado de Páscoa, num torneio juvenil que decorreu no Porto, marcaram a atualidade, depois de um vídeo divulgado nas redes sociais mostrar as agressões ocorridas no Campo do Outeiro entre uma equipa da formação do SC Cruz e do Meyrin FC, que levaram familiares de alguns jogadores portugueses a entrar em campo para agredir elementos da equipa suíça. O triste episódio ganhou dimensão internacional pela presença de várias equipas estrangeiras. “Se continuar assim, sem as autoridades a fazerem alguma coisa, a violência vai continuar a aumentar, porque não há controlo nem acontece nada a quem a pratica. Temos vários casos de torneios com situações de violência, não é só no nosso caso”, sublinhou, ao JN, Hélder Pereira, presidente do SC Cruz.
Sem hipóteses de cobrir todos os jogos ao fim de semana por falta de meios humanos, a Polícia de Segurança Pública (PSP) e a Guarda Nacional Republicana (GNR) são obrigadas a gerir os efetivos e os clubes têm de recorrer a empresas de segurança, como foi o caso no torneio do Campo do Outeiro, para corresponder às exigências da Federação Portuguesa de Futebol (FPF) e da Associação de Futebol do Porto (AFP). “A organização não foi nossa, mas de uma empresa que faz disto negócio e depois descura-se a segurança. Antigamente viam-se menos casos, porque não havia um jogo sem polícia. Agora põem-se duas pessoas com um colete amarelo, que ficam mais caras do que dois agentes policiais, mas um colete amarelo nunca vai impor o mesmo respeito que uma farda. Se não respeitarem um polícia, arriscam serem detidos”, argumentou ainda o presidente do SC Cruz.
Polícia é fundamental
Os últimos números fornecidos pela PSP ao JN, para o período compreendido entre julho de 2024 e fevereiro deste ano, corroboram a ideia de maior respeito quando há agentes destacados para cobrir os jogos da formação. Segundo a mesma fonte, nos primeiros sete meses da época, esta força policial cobriu 3998 eventos de futebol de formação e só registou incidentes em 75 deles (1,87%). De acordo com o mesmo relatório, já se verificaram, contudo, 235 casos de violência, em comparação com os 258 ocorridos no período homólogo. Uma ligeira descida que só pode merecer reflexão quando terminar a temporada e os números forem analisados de forma completa.
Segundo uma fonte da FPF, a organização das competições oficiais e distritais é da responsabilidade de cada associação, que tem uma comissão de avaliação de grau de risco das competições e que exige que sejam cumpridos todos os pressupostos de segurança, com policiamento ou segurança privada. Com a cobertura da PSP a fazer-se só a partir dos jogos de juniores, nos casos em que há registo de incidentes em outros escalões de formação caberá à comissão de risco avaliar as situações em concreto.
Desde o início desta temporada, todos os clubes são obrigados a ter um gestor de segurança com formação feita através da Autoridade para a Prevenção e Combate à Violência no Desporto, segundo adiantou uma fonte da AFP, que obriga ainda a que sejam desenvolvidas ações de formação de ética e integridade realizadas no âmbito da certificação destinadas a atletas, sendo permitido que dirigentes e pais também possam assistir. Os clubes organizam ainda ações de sensibilização junto dos pais ao longo da temporada, situação que também contribui para cumprir um dos critérios de certificação.
A Direção do SC Cruz resolveu, entretanto, suspender as duas equipas sub-17 e instaurar um inquérito. Até serem apuradas responsabilidades, atletas e pais estão proibidos de voltar a entrar nas instalações do clube. “Foi a forma de mostrarmos que somos uma instituição que não compactua com a violência e faltas de respeito”, argumentou Hélder Pereira.
O número crescente de casos explica-se, segundo a Secretaria de Estado do Desporto em resposta ao JN, pelas alterações introduzidas no Regime Jurídico da Segurança dos Espetáculos Desportivos em que todas as infrações passaram a ser reportadas e contabilizadas. Além do critério ser mais apertado, foram constituídas novas transgressões e verificou-se ainda uma maior sensibilização dos agentes fiscalizadores.
Perguntas & Respostas
É obrigatório ter polícia nos jogos de formação?
O policiamento só é feito dos juniores para cima. Mas quando não há agentes da PSP escalados para os jogos, os clubes podem optar por contratar segurança privada. A situação está prevista nos regulamentos da federação e das associações de futebol distrital.
Os clubes são obrigados a ter um responsável pela segurança?
Sim, desde o início da temporada em curso, os clubes são obrigados pelos regulamentos a ter um responsável pela segurança formado através da Autoridade para a Prevenção e Combate à Violência no Desporto (APCVD).
Que peso tem a segurança na certificação dos clubes?
A segurança é um dos pressupostos tidos como fundamentais pela Federação e pelas associações de futebol distritais, que obrigam os clubes a desenvolver ações de sensibilização junto de atletas, dirigentes e pais, ao longo de toda a temporada.
Quem suporta os custos com a segurança feita pela PSP?
Os custos de policiamento dependem do número de efetivos, sendo metade do valor suportado pelos clubes e os restantes 50 por cento pelo Ministério da Administração Interna.
“Pais projetam um imaginário de jogador de sucesso nos filhos”
Daniel Seabra
Coordenador do observatório para a violência no desporto
Como avalia os números que apontam para um crescimento de casos de violência no futebol de formação?
Os números têm muito que se lhe diga e acredito que haja da parte da PSP uma maior sensibilidade para os casos e uma malha muito mais apertada para situações que antes não eram sinalizadas.
Que motivos podem levar a estes atos de violência no futebol de formação?
É um fenómeno que tem sido estudado, que toca vários âmbitos e para o qual podem apontar-se várias questões, desde logo o desporto em si que não sendo violento, gera tensões e emotividade que pode levar à violência. Como diz o professor Manuel Sérgio, o desporto não é violento, mas tem violência. No caso do futebol de formação há a dimensão afetiva entre pais e filhos e as suas implicações. Podemos ainda falar da capitalização da representação social do jogador de sucesso, ou seja, há uma projeção social que é feita pelos pais relativamente aos filhos e uma aposta clara numa carreira para os filhos com a possibilidade de enriquecer. É projetado um certo imaginário de jogador de futebol de sucesso, com acesso a dinheiro, carros e mulheres. Há ainda uma reprodução da violência vivida no quotidiano e um conjunto de recalcamentos que são levados para as bancadas.
Que prejuízos podem trazer os pais na formação do filho?
Existe, geralmente, muita pressão dos pais sobre os filhos, ao ponto de influenciar uma relação que devia ser pedagógica entre jogador e treinador. Isso levou a que, em alguns casos, os treinadores tenham deixado de falar com os pais devido às pressões que sofriam para jogar um em detrimento de outro, porque todos os pais sobrevalorizam as competências dos filhos.
Como é que se combate este fenómeno?
O combate à violência não se pode reduzir à punição. As instituições públicas e os clubes têm de investir no processo formativo e pedagógico da luta contra a violência. As pessoas têm de ter a perceção de que se algo acontecer receberão uma punição. Não entendo as medidas de suspensão geral de clube quando suspende a equipa. Está a ter um ato de violência sobre os que não participaram nela. Até pode ser gerador de outros conflitos. Da mesma forma que um árbitro quando exibe um vermelho só expulsa um jogador, não a equipa toda.
Que repercussões mais podem ainda ser atribuídas a atos de violência ao mais alto nível?
Está estudado e comprovado que a seguir a ato de violência há uma espécie de fenómeno de mimetismo. Por exemplo, a seguir a um caso de agressão a um árbitro de futebol profissional, os casos de agressão em outros escalões multiplicam-se nas semanas seguintes.