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O choque frontal com a realidade não decorre dos resultados eleitorais, mas sim da incapacidade de lidar com a percepção generalizada, obrigação e ferramenta de defesa e salvaguarda do regime democrático que foi negligenciada ou até esquecida por boa parte dos responsáveis políticos. Como se, em nome de um tacticismo partidário em versão roleta, pouco interessasse quem fecha a porta, mas sim quem salva a pele. Ao jogo do empurra no Bloco Central entre quem queria menos ir para eleições, o povo respondeu com a manutenção da liderança e a substituição da alternância. Se o fim do bipartidarismo já se anunciara há um ano, a partir de agora ele só existe para os crentes e os que pretendam enterrar moribundos.
“Que força é essa?”, interrogava Sérgio Godinho noutras lides. O desejo de uma vida melhor para todos deu lugar a um país revoltado, com um inconformismo azedo, já sem brilho, só de afronta e maldade, ressabiamento. Fartos de tudo, fartos de todos, muitos enganados ou a depositar esperanças em Midas de veneno, sem interesse pela verdade ou por erradicar a corrupção que grassa por dentro, mas que nada interessa no momento do voto. Ser contra e ser zangado vale votos. Não interessa curar da realidade, de ser verosímil, de não dizer o contrário do que se disse, não é relevante insultar mulheres ou pessoas com deficiência, mentir descaradamente, achincalhar no Parlamento ou entregar às etnias todos os males do Mundo. Transmitir e amplificar a insegurança e os medos para dividir o país para reinar. Na realidade, nada interessa quando se estima que 58% dos perfis que se relacionam positivamente com o Chega são falsos. Do que estamos a falar quando nos defrontamos com um exército de propaganda em que os zombies são mais do que os soldados? Concluímos que não jogamos com essas regras e ainda bem. Caso contrário será fatal.
A clara vitória da AD trará, caso nada suceda do ponto de vista judicial, o maior período de estabilidade de que um Governo minoritário alguma vez gozou. Farto de eleições, já ninguém se atravessará pela voz do povo caso algum partido resolva desencadear uma nova crise política. O PS, mergulhado numa corrida contra o tempo, à procura de uma liderança que segure um partido com eleições autárquicas à porta numa versão autodestrutiva do que seria um passeio em muitos municípios, não pode esperar meses por um novo rosto. Se deixar que, também materialmente, seja a extrema-direita a tomar o seu lugar enquanto oposição, não só cavará a profundidade da perda como entregará ao PSD a mensagem de que “a seguir são vocês”. A responsabilidade corre no Bloco Central e, desta vez, não fala sobre o passado, mas sobre o que está para vir.
*O autor escreve segundo a antiga ortografia