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Constrangimentos vividos por estes dias no Aeroporto Francisco de Sá Carneiro, efeito da combinação de limitações, decorrentes de obras, com o nevoeiro, motivavam ontem a notícia de se acumularem por lá malas “sem dono”. Às mentes mais cínicas, as imagens de bagagem amontoada sugeriam logo estar ali pasto para aquela pessoa que roubava malas em aeroportos e que, sabe-se lá, bem capaz é de despertar ainda a simpatia de muita gente. O que importa aqui, todavia, é a constância de se verem desgraças em todo o lado.
Isto tem a ver com a forma como hoje vemos as coisas, ou somos levados a vê-las. Perante uma situação invulgar mas nada surpreendente, e para a qual todos os operadores estão há muito bem avisados, o suposto caos ganha prevalência, no espaço público, sobre explicações menos picantes, mas talvez mais interessantes. Por exemplo, o facto de a inatividade programada (sublinhe-se programada) do ILS (Instrument Landing System), a tecnologia que permite aos pilotos aterrar “às cegas”, ser inevitável numa profunda intervenção que permitirá melhorar o desempenho do aeroporto a vários níveis (ambiental, segurança, crescimento de tráfego...).
Outro exemplo dessa forma de ver as coisas está ligado à ideia (que beneficiará alguém) de falência do Serviço Nacional de Saúde. Entre as notícias comuns, para transmitir a ideia de caos, encontram-se as que dão conta de partos ocorridos em ambulâncias. Desde logo, lembremos que os partos são, por regra, programados, e o normal é que as parturientes cheguem com tempo e tranquilidade às maternidades. Os partos em ambulâncias são exceções, e as causas podem ser muitas. Mais: toda a vida houve crianças a nascer em ambulâncias, mas mudou a forma de lidar com isso. Hoje, ao noticiar tais ocorrências, procura-se o caos e a desgraça. Antes, a ênfase era posta no heroísmo dos bombeiros que conseguiam ajudar crianças a nascer na estrada. Notícias hoje apocalípticas eram antes histórias com um final feliz.
Será importante, claro, não perder de vista o facto de muitas reformas poderem facilmente penalizar as populações do interior, onde se tornam regra as dificuldades de acesso, não só à saúde, mas a tudo que as populações urbanas encontram ao virar da esquina.
Mas é também essencial combatermos esta apetência pelo negrume, que tantas vezes nos impede de ver finais felizes onde eles realmente estão.