Através do acompanhamento de doentes com covid-19, os médicos europeus estão à procura de tratamentos para uma doença persistente que é simultaneamente debilitante e intrigante, a covid de longa duração
Corpo do artigo
Evelina Tacconelli, uma especialista italiana em doenças infeciosas, está à procura de tratamentos para uma doença induzida pelo coronavírus que está a interferir com a vida de milhões de pessoas na Europa e noutras regiões.
Apesar da covid-19 em si já não ser considerada uma emergência mundial pela Organização Mundial de Saúde, muitas infeções têm sido seguidas de uma doença denominada "Covid prolongada". Esta doença está a afetar em particular as mulheres saudáveis.
Sintomas por resolver
"Não existe um tratamento comprovado para a covid prolongada", afirmou Tacconelli, professora de doenças infeciosas na Universidade de Verona em Itália.
Um estudo estimou que quase metade das pessoas que contraíram o coronavírus tinham sintomas por resolver após cerca de quatro meses, com um em cada 10 a sofrer de covid prolongada. Isto representa, pelo menos, 65 milhões de pessoas com uma doença que pode ter um grande impacto na vida.
A covid prolongada tem uma longa lista de sintomas e os cientistas esforçam-se por compreender por que razão algumas pessoas sofrem de problemas de saúde muito depois de terem superado o coronavírus. No entanto, vários elementos estão a tornar-se mais evidentes à medida que os médicos analisam grandes grupos de doentes.
"Não há uma única covid prolongada", afirmou Tacconelli, que coordena um projeto que recebeu financiamento da UE para compilar as informações médicas de dezenas de milhares de pessoas de toda a Europa. Estes incluem participantes com e sem covid-19 para permitir a realização de comparações.
A iniciativa de investigação, denominada ORCHESTRA, deverá estar concluída em novembro de 2023, ao fim de três anos. Esta recebeu quase 30 milhões de euros de financiamento, a maior parte dos quais – cerca de 28 milhões de euros – provenientes da UE.
Quatro estirpes
Existem, pelo menos, quatro tipos de covid de longa duração, todos com sintomas diferentes, segundo Tacconelli.
Um deles é uma manifestação respiratória que pode dificultar o exercício físico ou a corrida e, por vezes, até a marcha ou o sono.
Uma segunda manifestação envolve dores musculares que as pessoas não tinham antes da covid-19.
Um terceiro tipo assemelha-se à fadiga crónica, caracterizada por um cansaço intenso e pela incapacidade de retomar as atividades realizadas antes da infeção.
A quarta versão é predominantemente neurológica, sendo os principais sintomas as cefaleias e o esquecimento.
Surpresa na investigação
Os investigadores da ORCHESTRA procuraram responder a duas questões fundamentais: se existiam efeitos a longo prazo na saúde após a infeção viral e quais os resultados da vacinação e do tratamento precoce ao longo do tempo.
Até à data, uma surpresa do projeto diz respeito às mulheres.
"O que foi bastante inesperado foi o facto de mulheres sem outras doenças terem um risco mais elevado de síndrome pós-covid-19", afirmou Tacconelli.
Uma das razões pelas quais este resultado foi inesperado é o facto de que os homens idosos corriam um maior risco de morrer da infeção em si.
Frequentemente, as mulheres afetadas têm entre 40 e 50 anos e apresentam sintomas de fadiga crónica seguidos da manifestação neurológica da covid prolongada.
Há muito que é conhecido que as mulheres sofrem mais de doenças autoimunes – por razões ainda debatidas pelos especialistas - o que poderia explicar em parte a prevalência da covid prolongada nas mulheres.
Em todo o caso, a infeção inicial de coronavírus parece influenciar a manifestação da covid prolongada.
Por exemplo, as pessoas que se queixavam maioritariamente de cefaleias ou de sintomas no estômago quando estavam doentes com covid-19 correm um maior risco de contrair a manifestação neurológica.
Registos reveladores
A equipa da ORCHESTRA teve acesso a informações médicas de 70 mil trabalhadores do setor da saúde, cujo estado de saúde tem sido verificado periodicamente desde 2020. Estes trabalhadores foram escolhidos por estarem expostos a um risco elevado de transmissão da covid-19 e por efetuarem rotineiramente rastreios de doenças transmissíveis.
O âmbito do projeto inclui também "coortes de doentes" – grupos de indivíduos com características comuns – por exemplo, na França e na Alemanha. E inclui milhares de doentes vulneráveis observados de perto pelos médicos do hospital. "Todos estes registos médicos revelam que as pessoas vacinadas e os doentes hospitalares vulneráveis que receberam medicamentos antivirais ou terapia com anticorpos pouco depois de terem sido infetados têm um menor risco de covid prolongada", afirmou Tacconelli.
Em março de 2023, a Comissária Europeia da Saúde, Stella Kyriakides, afirmou que 17 milhões de pessoas na UE tinham sido afetadas pela covid prolongada e que o número estava a aumentar. Kyriakides prometeu mais investigação sobre as suas causas, consequências e tratamentos.
A covid prolongada é um desafio crescente para os sistemas de saúde na Europa e noutras regiões. Em dezembro de 2022, uma conferência em linha reuniu 800 especialistas em saúde e grupos de doentes da UE e dos EUA para abordar a questão, nomeadamente através de uma maior cooperação.
Acesso mais rápido
Uma fraqueza do sistema de saúde europeu que a pandemia do coronavírus expôs foi a dificuldade em aceder rapidamente a dados reais necessários para avaliar o efeito nos doentes e para encontrar tratamentos eficazes. Se as informações clínicas sobre os doentes de diferentes hospitais tivessem sido rapidamente comparadas, a ineficácia de um antibiótico chamado azitromicina e o efeito bastante precoce da cortisona na sobrevivência teriam sido detetados, segundo Tacconelli.
Para resolver este problema, os investigadores da ORCHESTRA estabeleceram informações à escala europeia sobre coortes de doentes. Esta recolha de dados baseia-se em coortes existentes e em novas coortes de grande escala na UE e em países não europeus.
O projeto integrou informações epidemiológicas, clínicas, microbiológicas e genotípicas sobre grupos de doentes com características ambientais e socioeconómicas comuns.
Um grande apoio à ORCHESTRA veio de outro projeto de investigação financiado pela UE: o unCoVer, que terminou em maio de 2023 após dois anos e meio, incluindo uma prorrogação de seis meses. Esta iniciativa surgiu quando José Luis Peñalvo, do Instituto de Medicina Tropical da cidade belga de Antuérpia, previu os benefícios da recolha de informações sobre doentes de diferentes hospitais.
"No início da pandemia, não era claro que tipo de tratamento deveria ser utilizado e não era claro se deveríamos interromper os tratamentos para os doentes crónicos assim que fossem admitidos no hospital", afirma Peñalvo, um epidemiologista que trabalhou no seu país natal, Espanha, e nos EUA antes de se mudar para a Bélgica em 2018. Procurou recolher informações rapidamente.
Cuidados aos doentes
Peñalvo começou por recrutar o Hospital Universitário de Antuérpia para a rede antes de contactar antigos colegas de centros médicos em Madrid.
O seu interesse centra-se em doentes com diabetes de tipo 2, hipertensão arterial e doenças cardiovasculares. Estas pessoas sofriam mais de covid-19. "Tinha interesse em prestar melhores cuidados a estes doentes, mas também em recolher dados sobre os doentes e na forma de analisar esses dados", afirmou Peñalvo.
Dezenas de hospitais – incluindo na Croácia, Irlanda, Itália, Noruega e Portugal, bem como em países não europeus como o Brasil e a Colômbia – aderiram à rede. A esperança é que os hospitais estejam mais bem preparados para lidar com uma futura pandemia ou para responder a questões médicas através da utilização de informações de doentes provenientes de vários centros de saúde, preservando, em simultâneo, a privacidade ao garantir o anonimato das pessoas cujos dados são utilizados.
Entretanto, Tacconelli da ORCHESTRA, afirma estarem a ser desenvolvidas possíveis curas para a covid prolongada.
"Estão a ser preparados novos tratamentos", afirmou. "Talvez daqui a um ano, com muita sorte, tenhamos algumas respostas dos estudos atualmente em curso".
A investigação neste artigo foi financiada pela UE. Este artigo foi originalmente publicado na Horizon, a Revista de Investigação e Inovação da UE.