A postura de Lucília Gago, desafiante e sem pingo de autocrítica, aparecendo perante uma entrevista televisiva como alguém que nada deve à explicação, apenas como se prestasse um favor forçado à causa pública, como se já tivesse explicado e fundamentado o triste paradigma em que vive a Procuradoria-Geral da República, abotoada ao mero exercício de-ver-e-deixar-fazer, seja como for e sem qualquer racional de equilíbrio, é um manual de penitência e compromisso com a maior demagogia que recria e fortalece os piores males. Aqueles que apodrecem o sistema democrático. A confirmação de que Lucília Gago goza de um espectro de inimputabilidade face ao que quer que diga e (não) faça ficou reiterada. É evidente que não conseguiria explicar o inexplicável, mas é na sua falta de compromisso com o dever de tentar esclarecer motivações seriamente questionáveis que se reforça o seu compromisso com o erro. Mais do mesmo, até ao fim, se fim houver.
A Procuradora-Geral da República escolheu a vitimização e a teoria da cabala para camuflar a sua incapacidade ou inacção. Não entende ou não quer entender, embora possa ou deva saber que os esclarecimentos que nos deve não são obrigação, são dever. À ameaça constante que pende sobre alguns protagonistas políticos, vítimas de processos de intenção durante anos sem qualquer dimensão ou projecção de culpa, Lucília Gago responde com mais ameaças: os processos não foram arquivados, pelo que alguma coisa ainda pode vir. Extraordinário.
A este permanente cutelo sobre pessoas vítimas de buscas absurdas, suspeitas terríveis, gente escutada como único meio de investigação durante anos, selectivamente e sem destruição do que é acessório, “voyeurismo” de ministério, sujeitas à violação diária do segredo de justiça proveniente do seu interior e dos interesses pouco claros de uma agenda persecutória, Lucília Gago responde com mais pressão, agitando a bandeira de uma campanha orquestrada por políticos. É a sociedade civil, porém, que reclama por justiça para quem se procura condenar antes do tempo.
É difícil acreditar que alguém com esta responsabilidade nos diga, sem pestanejar, que não acompanha os principais processos porque são muito detalhados e minuciosos. E porque não quer intervir. Mas é este o presente do Ministério Público, uma estrutura vital para o Estado democrático que sobrevive a várias autonomias autogestionárias num varrimento hierárquico horizontal. Num momento em que se prepara a substituição da Procuradora, o mais preocupante sinal não vem de uma “shortlist” com a maioria dos nomes em equação a saírem de dentro do Ministério Público. A maior inquietação advém do facto de quem actualmente o dirige continuar a ser a principal validação da desordem.
O autor escreve segundo a antiga ortografia

