Podemos blindar os discursos com frases satisfatórias, emoldurar oferendas com os melhores clichés, gastar verbo em frases vazias, rodopiar em estilo, modo sôfrego de assertividade e acabar, sem apelo nem agravo, literalmente no chão. No vazio, na incomodidade, a desejar que não tivesse havido uma hipótese sequer de redenção. O discurso de Natal de Luís Montenegro não demonstra virtude por ignorar olimpicamente a realidade ou por abandonar a adesão ao argumento profundamente falacioso que associa imigração, violência e parasitismo. O discurso de Natal insiste no perigo.
Exigia-se, depois do que se passou no Martim Moniz e no discurso que agora alastra em demagogia, que o primeiro-ministro abandonasse os tradicionais recursos natalícios de oratória para colocar a questão do racismo de Estado num patamar de desagravo inquestionável. Não era preciso um “mea culpa” envergonhado. Bastaria que traçasse como claras, de uma vez, as linhas que separam a sua argumentação da extrema-direita, a mesma que sempre aparece, como abutre à carne viva, quando sente que o PSD lhe dá a mão e lhe suaviza argumentos. Como foi o caso.
Continuamos em cedência. A retórica tóxica da extrema-direita não é afastada liminarmente. Com infelicidade, essa retórica continua a passar nas entrelinhas quando se adverte para a segurança “como património de imagem a manter” e encontra bases sólidas nas medidas recentemente tomadas pelos partidos que apoiam o Governo, PSD e CDS-PP, ao excluírem do direito à saúde os imigrantes que estejam em vias de regularização. Este é um acervo de populismo totalitário, inconcebível.
Com quase dois milhões de pessoas a viver abaixo do limiar da pobreza, dos quais 300 mil são crianças, com as dificuldades sentidas no SNS e na Educação, sem a garantia de maior investimento no Estado social que salvaguarde e defenda o Estado de direito, de pouco valem as declarações de Marcelo Rebelo de Sousa que bem tentou introduzir humanismo e solidariedade neste contexto tão crispado, “promovendo a igualdade e afastando as exclusões”. Exigia-se a Montenegro algo mais do que um discurso hábil. Este não é um Natal como os outros. Este era o momento para traçar distâncias e colocar o PSD na rota dos valores que sempre advogou. Até porque não falamos de políticas, falamos de princípios. Assim, a prenda de Natal foi mais um presente envenenado e a triste assunção de que aquilo que vimos não envergonhou quem governa.
(O autor escreve segundo a antiga ortografia)

