Mal teve o filho nos braços pela primeira vez, o pai Mario virou-se para a mãe Regina e atirou: “Será que é cedo demais para levar Jorge à sua primeira partida do San Lorenzo?”. Muitos anos depois, Jorge tornar-se-ia Papa, mas o destino futebolístico ficou traçado logo à nascença, segundo a lenda.
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Sendo argentino, estranho seria que Jorge Mario Bergoglio não quisesse saber de futebol. E tendo nascido e crescido no bairro de Flores, nas veias de Buenos Aires, também o credo futebolístico do primeiro sul-americano elevado a Papa respondeu a toda uma lógica. O San Lorenzo Almagro era a única possibilidade, até porque em casa não se respirava outro ar a não ser esse, com o pai, um emigrante italiano, a tratar de indicar o caminho da salvação ao filho mais velho, antes de morrer na sequência de um ataque cardíaco fulminante nas bancadas do ‘Viejo Gasómetro’, palco também de algumas das maiores alegrias da história de vida do Papa Francisco. “Aquele golo do Pontoni”, por exemplo, ficou-lhe para sempre. Aconteceu em 1946, quando o San Lorenzo foi campeão argentino pela segunda vez. Jorge, então com dez anos, assistiu a todos os jogos dos ‘cuervos’ em casa nesse ano e muito depois ainda haveria de se referir a esse período como um dos mais felizes e inesquecíveis em quase 90 anos de história.
Como bom argentino que se preze, Jorge Bergoglio também foi futebolístico-praticamente, mas o jeito – ou a falta dele – não deu para mais do que uns jogos no ‘potrero’. “Chamavam ‘pata dura’ àqueles como eu, mas não me importava de não ser grande coisa”, escreveu na sua autobiografia ‘Esperança’. A propósito disto, recorda um episódio relatado pelo grande escritor uruguaio Eduardo Galeano: “Como explicaria a uma criança o que é a felicidade?”, perguntou um jornalista. “Não lhe explicaria, dar‑lhe‑ia uma bola para jogar”, respondeu a teóloga Dorothee Solle. E a bola, nem que seja de maneira simbólica, fica para sempre; também Jorge Bergoglio nunca a largou. Entretanto, a vida torna-se mais séria e ele começa a dividir as fixações pela química, pela filosofia e pela teologia. Prossegue os estudos no Chile, volta a Buenos Aires, passa pela Alemanha, outra vez Buenos Aires e por fim estabelece-se em Roma. Enquanto isso, o San Lorenzo perde fulgor, conhece a aflição e as dificuldades, não ganha títulos, carece de referências, não tem ídolos. Até o ‘Viejo Gasómetro’ desaparece por ordem da ditadura militar que (des)governava a Argentina com mão de ferro.
Curiosamente, o ‘el Ciclón’ começa a reerguer-se na mesma altura em que Jorge Bergoglio ganha protagonismo no Vaticano. Na viragem do milénio, o San Lorenzo conquista os dois primeiros troféus continentais (Copa Mercosul em 2001 e a Copa Sudamericana em 2002), mas foi preciso Bergoglio virar Francisco para os “cuervos” se tornarem verdadeiramente grandes. Em março de 2013, Jorge é tornado Papa e um ano depois o San Lorenzo conquista a primeira e única Copa dos Libertadores da sua história. Um acaso? Calma aí. Ou não estivéssemos a falar da Argentina e dos argentinos, dos mais criativos a encontrar coincidências e sinais do além para explicar tudo e mais alguma coisa, principalmente no que diz respeito ao futebol. Ou Maradona não tem a “mão de Deus” e Messi não é “Dios”? Ora, logo se pôs a correr que uma coisa levou a outra e que houve intervenção divina no maior feito de sempre do San Lorenzo. A verdade é que nem Deus nem Francisco desmentiram esses rumores. Sabe-se lá. Poucos dias depois de derrotar o Nacional (Paraguai) na final, uma comitiva do San Lorenzo levou a taça ao Papa Francisco: também era dele.
“Instrumento para a paz”
A reconhecida paixão do Papa Francisco pelo futebol foi um bom pretexto para que, desde 2013, inúmeras figuras do universo futebolístico e delegações de clubes e seleções de todo o Mundo se deslocassem ao Vaticano. Diego Maradona, Lionel Messi, Gianluigi Buffon, Manuel Neuer, Philipp Lahm, Rummenigge ou Aurelio De Laurenttis (presidente do Nápoles) foram alguns dos que lhe beijaram o anel. À conta disto terá construído uma coleção invejável de camisolas dos mais variados tons e emblemas, umas autografadas, outras não. A mais importante talvez seja a que Maradona lhe entregou, com o nome Francisco e o número 10. Terá sido com essa entre as mãos e um terço que ouviu como a Argentina venceu o Mundial 2022. Ouviu? Sim, desde 1990 que não vê televisão por conta de uma promessa que terá origem na final do Mundial desse ano que a Argentina perdeu para a Alemanha.
Através dos livros, das experiências, dos encontros, de palestras e de umas quantas participações em eventos relacionados com a atividade, Francisco sempre sublinhou a influência positiva que o futebol pode ter na sociedade, acreditando mesmo que “pode ser um instrumento para a paz”. “O futebol é um jogo de equipa, pode fazer bem à mente e ao coração numa sociedade que põe em primeiro lugar o subjetivismo, a centralidade do ego”. Isto foi dito num evento intitulado “O futebol que amamos”, promovido pela Federação Italiana. Morreu um Papa e o futebol também ficou mais pobre.