Lisboa e Porto recebem “Exit above”: “A artesania é o que nos faz continuar relevantes”
Quarenta e cinco anos, 65 obras e 200 intérpretes depois, a coreógrafa Anne Teresa De Keersmaeker junta blues e Shakespeare, com perguntas por fazer.
Corpo do artigo
Anne Teresa De Keersmaeker, diretora da companhia Rosas Danst Rosas, figura incontornável da dança contemporânea europeia, regressa com uma nova obra provocadora e poética: “Exit above – after the tempest”. Hoje e amanhã na Culturgest, em Lisboa, e sexta e sábado, no Teatro Municipal Rivoli, no Porto.
“Originalmente, queria fazer uma peça sobre as origens da música pop, porque tudo isto é muito criativo: a pose, o beat, os textos”. Mas nesta pesquisa a coreógrafa belga, conhecida pela precisão estrutural das suas peças e pela íntima relação com a música, enveredou por atalhos. “Quando comecei a investigar as origens da pop, baseadas no folk irlandês trazido para a América, encontrei no blues a origem da música pop”, conta.
Analisando as letras e as temáticas, congregou tudo em desgostos de amor ou temáticas ecológicas. Esta suma empurrou-a a um encontro com a obra “A tempestade”, de William Shakespeare, e com o seu protagonista “Próspero”, uma reencarnação do colonialismo. “Uma estranha mistura dos tempos complexos em que vivemos, politicamente”, elucida.
Mas a peça recusa-se a dar respostas, “os tempos atuais pedem que continuemos a fazer muitas perguntas”, remata.
Tecnicamente, a peça assenta numa gramática de movimentos que privilegia a gravidade e a repetição, explorando a verticalidade do corpo em tensão com o chão. Os bailarinos percorrem o espaço com deslocações lineares, diagonais e circulares, num contínuo alternado entre a precisão quase matemática e o desvio rítmico. Há ecos de “Fase” e “Rosas danst Rosas”, mas com uma maturidade que escava os limites do gesto até ao esgotamento.
A noção de “uníssono imperfeito” é recorrente: os corpos dançam juntos, mas cada um com uma leve desfasagem, como um tempo em múltiplas camadas.
Tempestade interior
A música não perdeu a sua centralidade, com estes atalhos no caminho criativo. Como sempre na coreógrafa, surge num diálogo sensível com a composição de Meskerem Mees, jovem artista belga de raízes etíopes, cuja voz delicada e presença crua oferecem à peça uma textura sonora entre o folk, o blues e a oralidade poética. A estrutura musical organiza a dramaturgia da peça em três camadas: o silêncio e os sons do corpo, a música ao vivo de Mees e as gravações ambientais que evocam vento, mar, tempestade, referências subtis a Shakespeare, sem necessidade de literalidade.
A tempestade em “Exit above” é interior: é o corpo em rutura, a comunidade que procura formas de habitar o Mundo após o colapso. Anne Teresa De Keersmaeker não propõe uma leitura dramatúrgica tradicional; pelo contrário, fragmenta, dispersa, para que cada intérprete construa a sua própria ilha e exílio.
“Exit above – after the tempest” não é apenas uma obra sobre a condição humana pós-catástrofe. É uma pergunta deixada em aberto, um caminho iniciado sem promessa de chegada. A artista afirma ao JN: “Tenho 45 anos de carreira, fiz 65 obras e trabalhei com mais de 200 artistas, a artesania dos processos nunca poderá ser substituída pela tecnologia, isto é o que nos faz continuar relevantes”.
Reafirma-se como uma artista que recusa respostas fáceis. Passado todo este tempo, assegura: “O que mais gosto é de dançar sozinha, ver a transformação, a intensidade e a celebração, ter um momento de consolo”. Uma redenção a partir de hoje, em Lisboa.