Compravam fichas com notas de baixo valor para receber outras de 500 euros, como se fossem provenientes do jogo.
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Os valores são impressionantes. Com uma cadência quase diária, um grupo de empresários da Varziela, em Vila do Conde, usou o Casino da Póvoa de Varzim como uma máquina de lavar dinheiro, proveniente da fraude fiscal. Em cinco anos, entregaram mais de 124 milhões de euros, em dinheiro vivo, nas caixas do casino. Recebiam fichas de jogo que voltavam a converter em notas de 500 euros, apenas para obter talões oficiais de recebimento, usados para dar a aparência de que o dinheiro tinha uma origem no jogo e, portanto, legal. O esquema, que durou entre 2012 e 2017, está atualmente em julgamento no Tribunal de Matosinhos, onde 12 arguidos e quatro empresas respondem por associação criminosa, fraude fiscal agravada e branqueamento de capitais.
De acordo com o Ministério Público (MP), o megaprocesso de fraude e lavagem de dinheiro começou com os donos de estabelecimentos de venda de vestuário ou calçado, oriundos da República Popular da China, vendidos nos armazéns da “Chinatown do Norte”. Os empresários vendiam mercadoria sem qualquer tipo de faturação, omitindo assim o pagamento do IVA e IRC, devido ao Estado.
“Máquina de lavar”
Segundo a acusação, os arguidos criaram um grupo “destinado à prática sobretudo de ilícito de natureza fiscal e tributária que permitisse auferir de vantagens patrimoniais ilegítimas de valor elevado e consideravelmente elevado”. Para isso, os arguidos começaram por ocultar as verbas em contas bancárias pessoais ou de familiares, mas, rapidamente, perceberam que podiam utilizar o Casino da Póvoa de Varzim como “máquina de lavar” o dinheiro que ficava à margem das declarações fiscais.
Nas suas atividades diárias, os empresários recebiam dinheiro vivo, em notas de valor facial baixo, entre dez e 50 euros. Os envelopes eram recolhidos diariamente nas lojas e armazéns por dois arguidos. “Conhecendo a origem ilícita dessas quantias, cabia-lhes então transportá-las até ao Casino da Póvoa de Varzim, onde procediam à entrega das mencionadas notas de valor facial baixo para aquisição de fichas de jogo e vendiam as mencionadas fichas de jogo recebendo por essa venda as correspondentes quantias, sempre pagas em notas de 500 euros”, descreve o MP, que aponta o dedo aos funcionários do casino.
“Inércia dos funcionários”
A acusação garante que estes dois arguidos, frequentadores assíduos do estabelecimento poveiro, foram contando com “alguma inércia dos funcionários” da casa, que chegou a ser constituída arguida (ler caixa). É que, a um ritmo quase diário, os trabalhadores entregavam aos mesmos supostos jogadores notas de 500 euros e permitiam que os arguidos realizassem trocas de dinheiro, sempre entre 1500 e dois mil euros, evitando assim a obrigação legal de comunicar as operações e identificação do cliente às autoridades competentes na prevenção do branqueamento de capitais.
Com o caudal de dinheiro da evasão fiscal sempre a aumentar, a organização recrutou mais cinco “jogadores” que diariamente faziam o vaivém entre a empresas e o casino. O esquema só parou em março de 2017, quando a PJ do Porto e a Autoridade Tributária lançaram uma operação que desmantelou o grupo. Nesse dia, a um único arguido que vivia num Grande Hotel da Póvoa de Varzim, a PJ apreendeu 165 mil euros. A outro foi confiscado um maço de 143 notas de 500 euros, dissimulado num candeeiro, na varanda de casa.
Empresa chegou a ser arguida por suspeitas de branqueamento
A empresa Varzim Sol-Turismo, que gere o Casino da Póvoa, foi constituída arguida por suspeitas de branqueamento. A PJ desconfiou da postura de “alguma inércia” dos funcionários que trocavam diariamente as notas. Porém, “uma vez que não se recolheram indícios suficientes que os seus representantes e/ou funcionários tivessem participado na atividade criminosa, mormente que, nas operações de conversão de dinheiro, tivessem consciência de que as quantias que ali foram transacionadas adviessem de crimes de fraude fiscal e que os arguidos que as branquearam atuavam nessa veste”. Assim, o MP decidiu arquivar esta parte do inquérito por “falta de indícios suficientes”.
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Dinheiro na China
Sem especificar em que moldes e contexto, a acusação garante que os arguidos queriam obter notas de 500 euros, porque assim era mais fácil conseguir enviá-las para a China.
Fora dos casinos
Após as detenções dos elementos do grupo, em 2017, o juiz de instrução criminal determinou que os arguidos estavam proibidos de frequentar casinos. Também foram aplicadas cauções e proibições de se ausentarem do país com entrega de passaportes.
67 milhões de euros
Um único arguido trocou 67 milhões de euros, entre 2012 e 2017, no Casino da Póvoa.