Andre 3000 é o caso esquisito do dia. George Clanton é um bom rufia pop. Killer Mike foi um missal de comunhão (e de erosão). E aos 800 Gondomar saiu-lhes a lotaria. Melhor concerto do 1.º dia? Sampha — mas por falta clara de concorrência.
Corpo do artigo
De toda a gente, público e artistas, só os 800 Gondomar, que tocaram logo a seguir a Andre 3000, o caso hípnico do dia, perderam a cabeça. Com toda a razão — “nem tive tempo de trocar de roupa, ainda agora estava no campismo e agora já estou cá”, diz o baterista Rui Fonseca a atacar “Coração”, a grande caçada punk do trio português, um hino de cavalgadas, correrias e colisões que o põe a estilhaçar suor. Os outros dois também, todos a radiar: tinha-lhes saído a lotaria — estavam a tocar no horário nobre noturno do Palco Yorn do 31.º festival de Paredes de Coura, sacados à última da hora no campismo para ocupar o horário dos Glass Beams, que tinham saltado para o palco Vodafone no lugar dos Bar Itália, grupo inglês que por doença cancelou a aparição.
Sorte grande, os 800 Gondomar deram tudo até às tripas, “Cabeçudo”, “Faz o flip”, “Cedofeita”,“Cordoaria”, “AX GTI”, soltaram tudo, as odes aos subúrbios, ao aborrecimento, à frustração, houve até uma versão de saltar à corda com os dois acordes de “Take a walk on the wild side”, tudo cascado, bruto, cru, quadrangular, uma festa no faroeste, e tão viva, tão alacre, tão exata de genuinidade que se lhes perdoa tudo, até os muitos pregos e a muito punk desentoação.
A coisa ecossistémica
Drama, tensão elétrica a sério — foi isso que faltou, talvez, ao primeiro dia do festival.
A quietação magnética de Andre 3000, que tocou com banda em “free improv” o seu opus de new age devocional, “New blue sun”, no horário nobre do palco maior depois do sol, é divisória e só pára nos extremos: multisciente, lindo, livre, um primor de jazz ambiental e sofisticação, ou uma seca de todo o tamanho que isto não é Paredes de Montreux.
Andre 3000, a metade dos Outkast que trocou o hip hop dos titãs pela depurada constelação da música ambiental comandada com flauta, é um caso isotérmico, isto é, realiza-se sem que ocorra alteração de postura ou de temperatura no público. Ora o público não pediria àquela hora depois do jantar uma sobremesa ecossistémica de erudição.
Programado como um desafio, ou uma nítida provocação, deixou em delírio, um delírio sofreado e silente, claro, a turba da melomania, mas perdeu muitos dos outros, a maioria maçada, que falava e conversava cada vez mais alto dentro e ao redor do concerto, a abandonar em golfadas sucessivas a encosta, fatiada, confundida, que ficou só com metade no fim da atuação.
O missal de Mike e George Clanton
A entrar em palco à 1.50 horas, uma boa quinzena de centígrados a menos, Michael Santiago Render, o Killer Mike, que se apresentou com um coro de cinco vozes e finíssimos agudos de gospel, que é o hip hop americano do sul, mais um DJ, todos de branco, incluindo o Mike, que é bem rotundo e caloroso, deu um concerto harmonioso, cordial e competente, mas que não saiu do altar do missal.
Muito entusiasmo à frente, juventude reverencial, os refrões cantados como cláusulas sabidas a preceito, mas encosta acima era evidente o degradê, metade até ao topo num cansaço indiferente, a plateia esboroada no final, sem disfarçar, eram já três da manhã. 
Mesmo sendo de uma galáxia diferente da de todos os outros, uma galáxia de agentes lunáticos e provocadores, George Clanton, o americano da vaporwave e da pop hipnagógica, que está o tempo todo entre canções a instigar o público, a Super Bock e os bigodes dos rapazes da frente, a meter-se com toda a gente, a incensar Portugal — “I fucking love Portugal!” —, não deu o concerto da noite. Nem ele nem os anteriores, Wolf Manhattan, Sababa 5, Dorian Concept ou Glass Beams.
Mas andou lá perto, George Clanton, um imparável rufia palrador — “I fucking love Portugal! It’s so gay, so horny, so fun!” —, um raver irónico de feira, sardónico, cheio de piada e de potência pop, acabou em tronco nu, benzido de Super Bock — “I fucking love Super Bock!” —, a benzer freneticamente o público da frente, glorioso na sua épica da ruína.
Sampha, o congregador
Assim, e para quem às 3 da manhã já tinha passado dez horas dentro da inclinação do recinto, e se vira sem anímica de pernas para Model/Actriz e Sextile, só sobra Sampha para o melhor do estranho primeiro dia do festival Paredes de Coura 2024.  
Sampha, um apóstolo britânico da neo-soul que anda a renovar a R&B entre os seus saltos de fé, foi o grande congregador, o que chamou e aguentou durante mais tempo mais gente. Performer de detalhes, bom gosto e rigor, trouxe um quarteto muito eficiente para a sua voz de crooner vulnerável e calmante. Vocalista transcendente — a sua voz ao vivo supera a voz dos discos: tom distinto, fraseado intacto, impressionantes execuções de vibrato —, condutor e capitão, atrás do laptop ou a chegar-se à boca do palco à frente para dançar, controla a totalidade do ar do diafragma musical. Vibrante e percussivo, mas cheio de mel, cria um ambiente a meio tempo entre o misticismo de Erykah Badu e a experimentação pop de Björk, diz a Pitchfork, mas só até meio, dizemos nós, antes de Björk ter estilhaçado em maneirismos o resto da sua carreira coruscante.
Como se viu na encosta de Coura, onde obteve o menor índice de desistências do dia, Sampha disse que é na alma, e não no corpo, que a sua música inflama mais amplamente. À falta de um verdadeiro drama ou de uma qualquer tensão elétrica capaz de provocar pelo menos a despolarização espontânea de um par de neurónios motores, Sampha foi o melhor entertainer do dia e da noite.  
E os horários dos 12 concertos de hoje
Uma dúzia de concertos por dia até sábado, a maratona de montanha de Paredes de Coura repete hoje, quinta-feira, segundo dia, o padrão da distribuição entre palcos: conservadorismo, ponderação e todos os cuidados com o sal na encosta do palco Vodafone; desafios, aguilhoadas, possibilidades de exaltação no palco Yorn do socalco. Relembre aqui os 12 concertos do dia, mais os 24 dos dias a seguir.
Quinta-feira, 15 de agosto
Palco Vodafone
18h10 Quadra
19h55 Gilsons
21h50 Sleater-Kinney
23h50 L’Impératrice
01h50 Slow J
Palco Yorn
17h30 Moonshiners
19h00 Deeper
20h50 Wednesday
22h50 Los Bitchos
00h50 Protomartyr
02h50 Sprints
04h05 Joy (Anonymous)
Sexta-feira, 16 de agosto
Palco Vodafone
18h10 Branko
19h40 Nouvelle Vague
21h30 Cat Power
23h40 Girl In Red
01h55 IDLES
Palco Yorn
17h30 Conferência Inferno
18h55 Nourished By Time
20h35 Allah-Las
22h40 Benjamim
00h55 Beach Fossils
03h05 Mdou Moctar
04h30 Tramhaus
Sábado, 17 de agosto
Palco Vodafone
18h10 Hurray For The Riff Raff
19h50 Baxter Dury
21h25 Slowdive
23h25 The Jesus And Mary Chain
01h35 Fontaines D.C.
Palco Yorn
17h30 Valter Lobo
19h00 Palehound
20h40 Hotline TNT
22h35 Still Corners
00h40 Superchunk
02h45 Destroy Boys
04h05 Moullinex △ GPU Panic
