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Trata-se de doença mental que não estou habilitado a diagnosticar, pelo que chamar “cromo” à pessoa que aqui invoco poderá ser ofensivo. Exceto se, como é o caso, estiver também além do meu conhecimento, e fora da minha vontade, identificar essa pessoa. Ou seja, é mesmo um cromo o jovem que, com alguma frequência, viaja no mesmo autocarro que eu, instalando-se lá atrás e lançando uma de duas sentenças em voz alta sempre que algum passageiro abandona o veículo. Ou diz “sai, sai, sai!” ou “boa sorte, boa sorte, boa sorte!”.
Hoje, isto é, no dia em que escrevo, quis perceber se seria bafejado com um “boa sorte”, auspicioso para o resto do dia, ou com um “sai” de mau augúrio. Não percebi, pois o rapaz saiu três paragens antes da minha, mas fiquei algum tempo a pensar nele. Não a reduzi-lo à fraqueza das ideias, mas a elevá-lo a um carácter de divindade, como as valquírias entre os mortos tombados no campo de batalha: dando cerveja e hidromel aos bravos que levarão para Valhala (“boa sorte, boa sorte, boa sorte!”), deixando caídos os restantes (“sai, sai, sai!”).
Aqui, o campo de batalha é o quotidiano, não os sítios onde, cruelmente e de facto, se mata e, de facto e tragicamente, se morre. Até poderá parecer abusivo, num tempo em que se mata diabolicamente em nome da paz (o mais insano dos contrassensos), chamar campo de batalha às angústias do quotidiano, privado ou coletivo, e o modo como lidar com elas dita o nosso futuro além-túmulo (metafórico e não místico). Enfim, a alusão à mitologia nórdica justifica-se pelo facto de os guerreiros – todos nós, lutando para viver com dignidade – não serem repartidos por céu e inferno, salvação e perdição. É certo que metade dos guerreiros tombados, supostamente os mais valentes, são conduzidos pelas valquírias a Valhala, o salão do deus Odin, ao lado de quem combaterão no Ragnarök, uma espécie de fim dos tempos. Mas os restantes caídos não ficam no limbo, sendo levados para Fólkvangr, o salão da deusa Freyja, local de serenidade, descanso e bem-estar.
Ou seja, um e outro destino são bons (pelo menos, enquanto não vem o tal Ragnarök, uma série de eventos conducentes ao fim do mundo, em que tudo morre, incluindo os maiores deuses – traduz-se, justamente, por crepúsculo dos deuses). E não deixa de ser curioso como uma mitologia tão belicista acaba, desse modo, por ser simbolicamente mais equilibrada. Podemos ser diferentes tendo o mesmo objetivo, o bem comum. E ter, por tal, diferentes céus, sendo recompensados tanto em Valhala como em Fólkvangr. Sem fanatismos.
* democratas da direita à esquerda